São Paulo, sexta-feira, 29 de novembro de 1996
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Aids: o cenário de uma nova ordem social

CAIO ROSENTHAL

Apesar do retumbante otimismo sonoramente divulgado pelas descobertas das novas drogas e dos efeitos de suas associações neste ano de 1996, melhorando indiscutivelmente a qualidade de vida e aumentando a sobrevida das pessoas infectadas pelo HIV, não podemos compartilhar do mesmo entusiasmo ao reportarmos a Aids no Terceiro Mundo.
A pobreza, a discriminação e o analfabetismo são considerados os três fatores de maior risco para a disseminação da doença no planeta.
A OMS calcula 22 milhões de soropositivos hoje e 26 milhões no ano 2000. Isso significa 7.000 casos novos por dia. Desse total, 90% são habitantes do Terceiro Mundo. Oito milhões são mulheres.
O impacto demográfico e econômico é assustador. A enorme maioria dos infectados está na faixa dos 20 aos 40 anos, justamente a mais produtiva e a que garante o suporte familiar. Mais de 80% das mortes também ocorrem nessa faixa. Há previsões de 5 milhões a 10 milhões de órfãos com menos de 10 anos de idade para o ano 2000!
O efeito negativo nos indicadores sociais e nos setores produtivos é evidente. Diminuem a força de trabalho, a renda familiar, o acesso à educação, o cuidado com os dependentes, e cai a expectativa de vida. Estamos assistindo ao previsível "empobrecimento" da Aids.
O consumo de drogas cresce vigorosamente e atinge tanto homens como mulheres. Na Ásia, até o início dos anos 90, não havia Aids, e, hoje, as drogas e a prostituição abriram as comportas para a passagem do HIV.
Na África, a transmissão heterossexual é responsável por 13 milhões de soropositivos, e a mulher é a maior vítima das violações dos direitos humanos. A poligamia e a prostituição são hábitos rotineiros. As mulheres são obrigadas a recorrer ao sexo anal ou até a mutilações genitais para evitar a gravidez, contribuindo ainda mais para novas infecções. Doentes ou não, são obrigadas a arcar com os cuidados maternos com a prole e com o parceiro.
A questão religiosa está sendo duramente atacada pelos movimentos ativistas em todo o mundo. O alvo principal é a Igreja Católica, que proíbe o aborto e o controle da natalidade, ambos considerados causas importantes da disseminação da doença.
Nos países pobres, onde as mulheres são mais dependentes dos maridos, são submetidas a inúmeras formas de coerção e chantagem e, apesar de saberem que os parceiros mantêm comportamentos de alto risco, não têm meios legais de proteção contra a concepção. Quando grávidas, são forçadas a recorrer a abortos sem cuidados mínimos de assepsia. No Brasil, a estimativa é de 1 milhão de abortos por ano.
Culturalmente, o ato sexual é para satisfazer ao homem, e as mulheres não ousam pedir o uso do preservativo, com medo de sofrerem agressões físicas ou de serem abandonadas.
A questão da prostituição infantil nos países em desenvolvimento é terrível. Na África, crianças cada vez mais jovens são procuradas pelos adultos para se protegerem da contaminação. Expulsas de casa, são obrigadas a recorrer à prostituição e ao comércio de drogas para sobreviver, quando não estimuladas pelos próprios pais como recurso extremo de fonte de renda, como é cada vez mais frequente no Brasil.
"A igualdade entre os sexos, a eliminação da pobreza e a garantia dos direitos humanos são metas consideradas tão importantes quanto a batalha que se trava diretamente contra o vírus", diz a combativa presidente da Aliança Internacional contra HIV-Aids de Londres, Sarah Lee.
As pesquisas e os ensaios com medicamentos são mais direcionados aos homens que às mulheres -principalmente à comunidade homossexual-, por serem muito mais organizados e reivindicativos, além do que apenas 3% do orçamento global destinado à Aids é gasto nos países mais pobres, onde 90% das pessoas com HIV-Aids estão concentradas.
O acesso à educação e a necessidade de buscar uma linguagem mais identificada com os países mais pobres são itens prioritários para a contenção da epidemia. Ainda nessa linha, as pesquisas feitas com vacinas e o desenvolvimento de "coquetéis" de drogas são considerados por muitos, nos países mais atrasados, uma afronta. Para brecar a epidemia, o dinheiro deveria ser aplicado em programas de prevenção, cuidados básicos de saúde e na promoção dos direitos humanos.
Fica no ar, agora, a título de reflexão, estabelecer as prioridades em cada país. A Tailândia, por exemplo, conseguiu impedir cerca de 2 milhões de novos casos com um agressivo programa de prevenção e distribuição de preservativos. O Brasil, por sua vez, optou pela distribuição gratuita dos "coquetéis", mas ignora qualquer programa relacionado com prevenção e educação.

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