São Paulo, quarta-feira, 4 de dezembro de 1996
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"Tempo doido" nos afasta do Primeiro Mundo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dezembro em São Paulo marca a chegada das chuvas. Peguei um congestionamento monstro na marginal do Pinheiros. Enquanto motociclistas em alta velocidade avançavam entre as brechas dos carros enfileirados, parecendo prontos a arrancar as orelhas do motorista imóvel, fui escrevendo este artigo.
Cabe apontar, primeiramente, o absurdo em que incorrem todas as pessoas que desacreditam a regularidade do clima paulistano. É um grande clichê dizer que a meteorologia enlouqueceu, que fez mais frio em novembro do que nunca, que o inverno não é mais como antigamente, que a primavera chegou fora de hora, que o tempo, enfim, está maluco.
Acho que essas afirmações são sobretudo uma ilusão de ótica. As estações, as temperaturas, os calores e frios chegam em São Paulo com razoável regularidade, e qualquer pesquisa estatística chegaria facilmente à mesma conclusão: de dezembro a março, enchentes, de abril a setembro, ar poluído e seca.
A época das enchentes se inaugura agora e, junto com o Natal dos shopping centers, determina focos e mais focos de congestionamento na cidade. Não há novidade nisso.
Mas é como se o habitante de São Paulo estranhasse, a cada vez que se manifesta, a espantosa regularidade do clima paulistano. "Que tempo mais doido!", reclama o habitante, numa frase tão previsível quanto um relógio de cuco.
Certamente, é estranho vestir casacos de lã em pleno novembro, mas isso não nos impede de saber que, em fevereiro, invariáveis chuvas inundarão as marginais e que em julho a cor de rosa de um crepúsculo poluído vai se repetir dia a dia, num espetáculo implacável, seco, preocupante.
Haveria uma conclusão sociológica a tirar desse movimento de opinião pública. O paulistano aposta na imprevisibilidade do clima, na irrupção de um "tempo doido", na irregularidade das estações, por uma razão muito simples: sente-se distante, ainda, do Primeiro Mundo.
Queria estar na Europa, onde neva, onde o inverno é para valer. Nostálgico das alternâncias rígidas que vigem no clima temperado, seu estranhamento com o clima local é um desconsolo, uma revolta, uma humilhação.
Por isso mesmo, não reconhece, ou reconhece mal, as regularidades de seu próprio clima, implacável nas distinções entre chuva e seca, por exemplo. É que há também um prazer em acusar "esse tempo maluco". As irregularidades imaginárias do clima nos distanciam do Primeiro Mundo, o que é lamentável, mas nos aproximam, o que não é tão ruim, da baderna dos trópicos.
É essa baderna que nos autoriza a estacionar em fila dupla, a corromper o guarda de trânsito, a fazer uma conversão proibida, a avançar no sinal. Tipicamente paulista é o comportamento de reclamar da ausência de regras e, ao mesmo tempo, aproveitar-se do descalabro geral.
Queremos ser, ao mesmo tempo, melhores que os brasileiros -nortistas, cariocas- e iguais a eles. O paulistano é transgressor e moralista, moderno e atrasado. Quer o melhor dos dois mundos; construiu-se uma cidade, entretanto, que reúne o pior de tudo: arrogância sem lei, luxo sem refinamento, riqueza sem vergonha, civismo sem autocrítica.
Eis então que o prefeito eleito de São Paulo, Celso Pitta, tira uma viagem de férias em Nova York, Londres e Paris. Segundo reportagem publicada na Folha, o que gastou nesse passeio é muito mais do que fariam prever seus ganhos anuais.
Se Erundina tivesse sido eleita e resolvesse tirar férias num quitenete em Mongaguá, usando touca de banho e maiô fora de moda, as críticas seriam até mais violentas. Nada pareceria mais demagógico, mais falso.
Celso Pitta, num sobretudo elegantíssimo, desfilando pelo inverno nova-iorquino, representa bem ou mal nossas aspirações paulistanas ao Primeiro Mundo.
Antigamente toda perua brasileira fazia questão de ter seu casaco de peles para desfilar no Municipal. Fazíamos de conta que o inverno paulista era dos bons.
Hoje em dia, qualquer prefeito, governador ou presidente toma, como primeira decisão de governo, o partido de viajar para o exterior.
Como se, em Nova York, encontrássemos a cidade que imaginariamente é a nossa e tivéssemos um prefeito que nos governa de fora, acima das próprias possibilidades financeiras.
Propaganda pessoal, sobretudos, casacos de pele sobrepõem-se a uma realidade que ninguém quer ver. Poluição e chuvas, enchentes e congestionamentos, para não falar de assaltos e mendigos, tudo isso surge como anomalia, como excentricidade meteorológica, como transgressão estranha e tropical num mundinho tão bem-arrumado como é o dos shopping centers e dos escritórios da Berrini.
"O tempo está maluco em São Paulo": nessa frase, atribui-se maluquice a quem não a merece de modo nenhum.

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