São Paulo, quinta-feira, 5 de dezembro de 1996
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"Neoliberalismo": revolta contra o século 20

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

As forças de esquerda apresentam uma tendência quase compulsiva a cair na rede de mistificações dos seus adversários. Em vez de rechaçar os termos propostos pelo ideário dominante, preferem duelar com fantasmas e ideologias extravagantes.
Em se tratando de "neoliberalismo", por exemplo, a primeira tarefa da crítica deveria ser a de recusar a mitologia construída em torno de um conjunto de idéias ultrapassadas que, no vácuo da crise dos grandes ideais igualitários, vêm hipnotizando os mais crédulos.
A própria etiqueta "neoliberal" é enganosa e não deveria ter sido aceita. Confere status de novidade a um fenômeno que representa uma volta ao passado e que não incorpora nada de fundamentalmente novo ao velho liberalismo.
Como há um preconceito generalizado a favor do novo e do "progresso", o prefixo "neo" já coloca os críticos, de saída, em posição desvantajosa.
Mais importante é notar que o discurso "neoliberal", apesar do seu aparente triunfo, não encontra apoio na realidade. Há uma enorme distância entre a retórica "neoliberal" e a prática dos países nos quais essa ideologia teve origem.
Muitos críticos nem tomam conhecimento disso. Deixam-se iludir pelo discurso dominante e esquecem de examinar dados.
Se observarmos as estatísticas agregadas dos países desenvolvidos no período universalmente tido como o auge do chamado "neoliberalismo" -do final dos anos 70 em diante-, veremos que a participação do Estado na economia não diminuiu. Ao contrário, aumentou.
É certo que houve desregulamentação de mercados, dos sistemas financeiros, programas de privatização etc. Mas a presença estatal aumentou na grande maioria dos países desenvolvidos nesse período.
É o que mostram, por exemplo, estatísticas publicadas periodicamente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico -OCDE.
Nos EUA e no Japão, o gasto público total passou de 31% do PIB, em 1978-81, para 34%, em 1992-95. Na Alemanha, de 48% para 49%. No G-7, que inclui, além dos três países já citados, o Canadá, a França, a Itália e o Reino Unido, a média ponderada da relação gasto público/PIB aumentou de 36% para 40% nesse período.
Enquanto o "neoliberalismo" triunfava no plano ideológico, aumentou, também, a carga tributária, definida como relação entre receita corrente do governo e PIB. Nos EUA, de 30% (78-81) para 31% (91-95). No Japão, de 27% para 32%. Na Alemanha, de 45% para 46%. No G-7, de 33% para 36%.
No mesmo período, cresceu também o endividamento do setor público. Nos países do G-7, a dívida pública bruta passou de 42% do PIB, em 1978-81, para 68%, em 1992-95. Em termos líquidos, o endividamento governamental dobrou nesse mesmo período, passando de 21% para 42% do PIB.
Dados semelhantes foram apresentados em relatório recente do Fundo Monetário Internacional -outra fonte insuspeita de preferências estatizantes.
O FMI atribui o aumento da carga tributária, observado "em quase todos os países desenvolvidos nas décadas recentes", ao aumento das contribuições sociais e a "impostos diretos mais altos -muitas vezes via alíquotas marginais elevadas." O crescimento dos déficits e do endividamento públicos nesses países é explicado basicamente por aumento ainda maior nas despesas públicas, de uma média simples de 28% do PIB em 1960 para 50% em 1994.
No plano da política de comércio exterior, também é notável a distância entre retórica e realidade. Em trabalho recente, o economista Robert Wade, da Universidade de Sussex, observa que, enquanto as barreiras comerciais vêm descendo no Sul, o movimento no Norte tem sido na direção oposta. Das 24 economias integrantes da OCDE, apenas quatro reduziram obstáculos ao comércio ao longo dos anos 80.
O lema dos países desenvolvidos bem poderia ser: "Façam o que digo, não o que faço!"
O aumento da participação do Estado na economia nas últimas décadas representa, na verdade, a continuação de uma tendência mais antiga.
Ao longo do século 20, o Estado esteve presente de forma decisiva e crescente na definição dos rumos do capitalismo nos países mais adiantados. No campo econômico, com a rejeição dos automatismos do mercado e a adoção de políticas macroeconômicas de tipo keynesiano. No campo social, com a montagem de uma ampla rede de proteção social, o chamado Estado do bem-estar.
O que estamos vendo nos últimos 20 anos é uma tentativa, até agora não muito bem-sucedida, de reverter essa tendência. Busca-se fazer recuar a ação estabilizadora e reguladora do Estado, restaurar a era pré-keynesiana e reduzir o escopo das políticas sociais. O chamado neoliberalismo é uma revolta contra o século 20.
Diante da configuração do capitalismo atual, pode até parecer surpreendente o domínio das idéias "neoliberais". Parte da explicação está no colapso do sistema soviético. O esgotamento do planejamento central jogou muita água no moinho dessas idéias, conferindo-lhes certo ar de plausibilidade.
Como notou o grande economista keynesiano James Tobin em seu último livro, "Full Employment and Growth", perde-se de vista que quem ganhou a Guerra Fria não foi a economia pura de mercado, mas a economia mista, na qual os governos desempenham papel substancial e crucial.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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