São Paulo, sábado, 7 de dezembro de 1996
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O julgamento de 5 bilhões

MÁRCIO SOTELO FELIPPE

Em artigo publicado na coluna "Data Venia", em 30/11, o professor e advogado Renan Lotufo comenta o acórdão do STF na Adin 1.098-1, proposta pelo governador de São Paulo contra dispositivos do regimento do Tribunal de Justiça de São Paulo relativos aos precatórios. Afirma-se perplexo com o controvertido noticiário a respeito da decisão, que livrou o erário paulista de indevida cobrança de R$ 5 bilhões.
As dificuldades para alcançar as consequências de uma ação declaratória de inconstitucionalidade são compreensíveis. É que se trata de um controle abstrato da adequação de determinado texto normativo à ordem constitucional. O tribunal, aí, não cuida de questões concretas e não emite normas de imediata eficácia prática.
Sendo assim, somente se pode verificar o alcance da decisão tendo em mente as condutas específicas que eram amparadas pelo texto normativo extirpado do ordenamento por inconstitucionalidade e que devem ser desconstituídas. Isso explica por que os derrotados puderam lançar mão de tantos ingredientes de confusão após a decisão do STF, visando atirar a opinião pública contra o Executivo e não esclarecê-la.
De tudo quanto se falou e se fala a respeito, a análise do professor Renan Lotufo foi a avaliação mais serena do julgamento. Ainda assim, peço vênia ao professor para demonstrar um equívoco grave e uma imprecisão em seu artigo.
O equívoco. A reiteração pelo STF do entendimento a respeito da natureza administrativa, não jurisdicional, das atribuições do Tribunal de Justiça no processamento dos precatórios não tem as consequências que o articulista julgou vislumbrar (a Fazenda teria ficado impotente sem recurso contra as decisões do tribunal paulista). Era uma das principais teses da Procuradoria Geral do Estado porque:
1 - sendo atividade administrativa, as decisões do tribunal relativas aos precatórios são passíveis de revisão pelo próprio tribunal;
2 - se o tribunal paulista não incorporar o sentido da declaração de inconstitucionalidade feita pelo STF ao seu regimento, ou à interpretação do seu regimento, a Fazenda pode e deve ingressar com as medidas cabíveis;
3 - não cabendo mandado de segurança, porque ultrapassado o prazo de 120 dias, o Estado de São Paulo pode e deve também opor o seu direito pelas vias ordinárias, obtendo as necessárias medidas cautelares. Aliás, como qualquer prejudicado que em tese tivesse direito processual ao mandado de segurança, no 121º dia do ato que o prejudicou.
Deve ser notado ainda que é inaceitável supor que o tribunal paulista pudesse manter decisões administrativas tidas como inconstitucionais, se o Estado estivesse desprovido de remédio processual adequado, e apenas por isso. Não sei a que ficará reduzida esta sociedade quando o Judiciário não cumprir as decisões do próprio Judiciário.
A imprecisão. Afirma o articulista que, segundo o acórdão, os ofícios de 90 dias são constitucionais, "para a complementação de depósitos insuficientes, por não atualizados, ou decorrentes de erros materiais, ou de inexatidões de cálculo (...). Inadmitida, portanto, a fixação do prazo no requisitório original, ou em atividade 'ex officio' introduzindo novos índices, exceto se estes forem substitutos fixados por lei nova".
O Supremo jamais disse, singelamente, que os ofícios de 90 dias servem para complementar depósitos insuficientes "por não atualizados", ou que a introdução de novos índices está vedada apenas "ex officio", como pode dar a entender a frase do articulista. Transcrevo a decisão: "... a requisição a título de complementação dos depósitos insuficientes, a ser feita no prazo de 90 dias, somente deve referir-se a diferenças resultantes de erros materiais ou aritméticos ou de inexatidão dos cálculos dos precatórios, não podendo dizer respeito ao critério adotado para a elaboração do cálculo ou a índices de atualização diversos dos que foram atualizados em primeira instância, salvo na hipótese de substituição, por força de lei, do índice aplicado".
Quer dizer, jamais, em qualquer hipótese, poderá o tribunal alterar os índices estabelecidos em primeira instância. Se esses índices forem extintos, por lei, e substituídos, por lei, pode o tribunal apurar eventual diferença com base no novo índice. A hipótese é de escassa repercussão prática. O que o tribunal paulista fazia e não poderá mais fazer, devendo desconstituir o que já fez, era introduzir índices já existentes ao tempo em que fixados pelo juiz de primeira instância os critérios de atualização, e por ele desconsiderados. Portanto, não substituía índices extintos por lei. Invadia atividade jurisdicional que não podia ser sua por força de preceito constitucional, atingindo a coisa julgada. Essa é a essência da questão. O Estado nada tem contra a substituição de índices quando há extinção legal. Aí ela é justa e preserva a coisa julgada, garantindo o valor real do débito.
O que importa ressaltar é que a introdução pelo tribunal de índices já existentes ao tempo da sentença que fixou os critérios de atualização e excluídos dela resultava em acréscimo de nada mais nada menos R$ 5 bilhões na conta dos precatórios até o momento em que a Procuradoria Geral do Estado computou os ofícios de 90 dias recebidos. Se a prática persistisse, a conta seria muito maior, e este Estado não poderia mais ser administrado racionalmente.
Como se vê, as consequências do julgamento da Adin 1.098-1 não são nada desprezíveis.

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