São Paulo, sábado, 7 de dezembro de 1996
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Júlio Verne criou a maior jangada do mundo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O fértil inventor de tramas que foi Júlio Verne jamais terá tido idéia mais curiosa e -de um ponto de vista histórico- mais clarividente do que aquela em que montou seu romance "La Jangada".
A história básica do livro é que o fazendeiro João Garral, que tem enorme propriedade em Iquitos, no Peru, precisa ir, com a família, até Belém do Pará. Pois, para não sair dos seus confortos, Garral, em vez de alugar um navio, manda derrubar uma floresta, faz com os troncos uma jangada gigantesca e nela constrói, ou copia, a sede da sua fazenda, com a senzala, a capela local, armazéns e armarinhos.
João Garral, em suma, recusa-se a viajar no espaço, a se transferir, se deslocar como uma coisa qualquer. Ele irá, descerá o Amazonas até sua foz, já que precisa ir, mas dentro dos seus costumes, seus hábitos e suas manias.
Não se afasta do que tem, nem muda nada do que é. Viajará pelo mundo dos homens em geral, mas dentro de sua casa, cercado dos seus familiares e escravos, no centro do seu mundo patriarcal. Os incomodados que se mudem.
Só é pena que esse cenário de abertura de "La Jangada" não acabe na catástrofe que o leitor espera. Porque a idéia do jangadão de Júlio Verne esconde uma metáfora perturbadora do país: nosso eterno Brasil escravocrata tentando ignorar as próprias forças da natureza, simbolizadas na Amazônia. O jangadão devia realmente encalhar no meio da jurássica fauna inventada em "O Mundo Perdido" por Conan Doyle, o Júlio Verne inglês.
Não é o que acontece. Profeta mais calmo e, no caso, mais displicente do que poderíamos imaginar, Júlio Verne carrega seu castelo rural sem um solavanco até Belém do Pará.
Preferiu, em lugar de compor o romance quase que imposto pela imperiosa idéia da cidade flutuante, cuidar o tempo todo do drama pessoal de João Garral, acusado de um crime que não cometeu.
A confissão do verdadeiro culpado é esclarecedora e definitiva, mas consta de um documento cifrado. A luta é a busca da chave numérica que tornará o texto compreensível. O próprio Verne se refere a um conto de Edgar Allan Poe com trama parecida.
E, enquanto essa pobre novelinha policial se desenrola, casa grande e senzala vão descendo impávidos o Amazonas, a bordo do jangadão.
Agora pergunto eu: quem conhece "La Jangada", de Júlio Verne, no Brasil? Pela parte que me toca, só tomei conhecimento da sua existência há uns poucos anos.
Num livro italiano sobre literatura amazônica, esbarrei na referência ao livro de Júlio Verne, publicado em 1881. O título não tinha nada a ver com "radeau", que é a palavra francesa para jangada.
Júlio Verne tinha ido direto ao português, "La Jangada". Será que o livro foi traduzido? Eu li, como todo o mundo, "Vinte Mil Léguas Submarinas", "A Volta do Mundo em 80 Dias", ou "Miguel Strogoff". Mas "La Jangada"?
A Biblioteca Nacional informa que em 1966 a editora Matos Peixoto publicou tradução de "La Jangada". A biografia de Júlio Verne que consultei em dois dicionários enciclopédicos sequer menciona o romance.
E a obra clássica que temos no Brasil sobre o assunto jangada, o encantador "Jangada", de Luís da Câmara Cascudo, não diz absolutamente nada sobre o livro de Júlio Verne.
Cascudo não era um "scholar" superficial. No capítulo "Construção" do seu estudo, Cascudo começa do comecíssimo, dizendo: "Em abril de 1500 Pero Vaz de Caminha ensinava que as jangadas 'somente são três traves, atadas entre si'. (...) É a primeira lição sobre com quantos paus se fazia a futura jangada, que ainda não tinha este nome".
A partir de Pero Vaz, Cascudo vai à jangada tal como a viram Jean de Léry, Magalhães Gandavo, Marcgraf e Nieuhof, Henry Koster, Tollenare, a mulher de Agassiz.
Não havia de faltar no livro de Cascudo, quando ele se ocupa de poetas e escritores contemporâneos, a história, talvez a melhor de todas, que é a contada por Rachel de Queiroz.
Ei-la: "Vinha um navio inglês em mar alto, quando de bordo se avistou uma jangada. Pensaram naturalmente que eram náufragos, agarrados àquela balsa rude. Pararam, atiraram uma linha, gritaram coisas em inglês. Os jangadeiros apanharam a corda, sem entender. 'Que será que eles querem, compadre?' Até que o mestre da jangada pensou, interpretou: 'Acho que eles estão querendo é reboque'.".
Voltando agora ao assunto: como explicar que não haja na "Jangada" de Câmara Cascudo menção, sequer, à maior jangada jamais construída no mundo, e por ninguém menos que o fundador, ou um dos gênios fundadores da ficção científica?
Bom, a verdade talvez seja que "A Jangada" me desapontou porque o tempo todo em que o li o romance me trouxe à memória o esplêndido filme que é "Fitzcarraldo", de Werner Herzog.
Na inspiração que levou Júlio Verne a derrubar toda uma floresta para construir seu "Titanic" de paus roliços, havia o grão de loucura que levou Fitzcarraldo a carregar seu navio por cima das colinas amazônicas para maior glória da ópera italiana, que ele toca para os índios e as araras num vetusto gramofone.
Vejo num livrinho recente sobre Júlio Verne que um diretor espanhol, Gómez Muriel, teria filmado "A Jangada" em 1961, com o título de "800 Léguas por el Amazonas". Mas alguém ouviu falar nesse filme?
Que sortilégio, que mau olhado é esse que parece ocultar e dissolver na Amazônia, como uma esguia piroga, a maior jangada que a literatura inventou, a jangada que ninguém jamais saberá dizer com quantos paus se fez?

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