São Paulo, sábado, 7 de dezembro de 1996
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Herança da terra

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Falei anteontem sobre a nova Idade Média, para a qual a globalização e a modernidade estão nos empurrando. Durante a Idade Média, o valor, o bem supremo da sociedade, a moeda unificada era a terra. A sua posse era ao mesmo tempo o poder e o direito. Praticamente não havia papel-moeda. Dobrões, escudos, luízes eram bens em espécie. O bem maior, que criava e justificava os demais bens, era a terra. O sol não se punha no domínio dos poderosos.
Em volta do poderoso maior (o rei, o imperador, o barão) havia cortes e cortesãos que dispunham de menos terra. Guerreava-se por vários motivos, mas, no fundo, o problema era sempre mais terra. Ela justificava tudo -inclusive o poder dos papas que serviam de árbitro em disputas mais complicadas.
Quem não tinha terra era pior do que um sem-terra de hoje. Era pouquíssima coisa a mais do que um animal. E o seu dono tinha poder de vida e morte sobre ele -inclusive sobre a sua cama.
Substitua-se "terra" por "impulsos eletrônicos" que transferem diariamente trilhões de dólares de uma conta para outra, de um país para outro -e veremos que, embora sem a mesma identidade, a analogia é a mesma.
Existe até uma espécie de papa para arbitrar conflitos mais delicados: os organismos internacionais tipo ONU, FMI, Banco Mundial, Grupo dos 7 etc. Os casamentos na Idade Média que davam a um duque mais terra, a um imperador um império maior, são exatamente como os conglomerados que se formam por aí, juntando sanduíches com telecomunicações, computadores com pipocas, remédios com revistas de sacanagem.
Cristianismo e comunismo fracassaram na tentativa de mudar esse referencial histórico.
90% da humanidade serviu apenas de massa, cenário feito de carne e sangue para o poder, ontem da terra, hoje dos impulsos eletrônicos que movimentam contas bancárias.

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