São Paulo, sábado, 7 de dezembro de 1996
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Fundamentalismo maltrata democracia

EDUARDO JORGE

O aborto é um processo traumático, que deixa marcas nas mulheres e nos casais que o praticam. Assim, como reduzir tanto quanto possível sua incidência? Não com a clandestinidade. Por isso, registro, transparentemente, que sou pela sua descriminação.
As igrejas, particularmente a Igreja Católica, tiveram papel determinante na construção de nossa nação, e seus ideais impregnam nosso imaginário, nossa consciência e nossos costumes. Falo isso para reconhecer que a opção pela descriminação da interrupção da gravidez no Brasil tem de ser muito cautelosa e respeitosa. Certamente, será um processo demorado.
Mas o que nós queremos tratar aqui, na verdade, não é isso. O Código Penal, no artigo 128, permite duas exceções na proibição do aborto: quando a gravidez é resultado de estupro ou quando há risco para a vida da gestante.
Coloco, então, duas medidas que julgo possível, mediante deliberação do Congresso Nacional, imediatamente entrarem em vigor:
1) garantir no SUS que alguns hospitais se organizem para atender de forma eficaz e rápida os casos de aborto legal segundo o Código Penal em vigor. Isso não modifica, em absoluto, a atual legislação sobre aborto. Apenas supera a burocracia, a desorganização e o preconceito. É verdade que a filha de um cidadão rico tem esse direito pagando a uma clínica particular. Porém uma mulher do povo jamais conseguirá superar os atuais obstáculos, restando então recorrer a métodos e locais precários.
2) incluir outro item no artigo 128 do Código Penal, permitindo abortos em casos em que a ciência indica haver gravíssimas anomalias fetais, incompatíveis com a vida, não permitindo uma sobrevida prolongada da criança. Note-se, não se trata de autorizar o aborto em casos como a síndrome de Down e assemelhados, mas sim em casos de patologias que não permitam tratamento intra ou extra-uterino.
Outra possibilidade é ampliar o conceito atualmente previsto de "risco de vida" para risco à saúde da mulher, mediante uma avaliação rigorosa de uma junta médica.
Além dessas providências, há uma até anterior. Se queremos reduzir a incidência e as consequências do aborto e mesmo da esterilização, devemos implantar um programa em larga escala de atenção à saúde reprodutiva (educação sexual, planejamento familiar etc.). O artigo 226 da Constituição garante esse direito, que foi regulamentado pelo meu projeto 209/01. Infelizmente, o presidente o vetou em parte e não liberou as verbas necessárias para o trabalho do SUS.
É preciso que as forças que hoje se opõem às modificações em relação à legislação sobre a interrupção da gravidez, que são as mesmas que se opõem à implantação do meu projeto de planejamento familiar, tenham uma atitude mais aberta ao diálogo, permitindo que o Brasil honre seus compromissos com as resoluções dos encontros da ONU no Cairo e em Pequim.

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