São Paulo, sábado, 7 de dezembro de 1996
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Difícil normatização

GÉRSON PERES

O aborto é tema complexo e polêmico. Por isso mesmo, todos os países têm dificuldades em normatizá-lo.
Os obstáculos decorrem da definição da vida pela ciência, pela religião e pelo direito. A primeira comprova a existência da vida desde a concepção. A segunda não admite o aborto nunca. Para ela, "a vida é sempre um dom de Deus". O aborto é, pois, um pecado gravíssimo. O terceiro varia sua linha de ação normativa de nação para nação.
Opino sobre este último no Brasil. A Constituinte de que fiz parte, no capítulo dos direitos e garantias individuais, artigo 5º, fixou norma delimitadora garantindo aos brasileiros e estrangeiros residentes no país "a inviolabilidade do direito à vida". O Código Penal, muito antes dela, restringe a prática do aborto por médico (aborto necessário) "se não houver outro meio de salvar a gestante" e "se a gravidez resulta de estupro".
O projeto de lei 20/91, em discussão, quer reduzir as restrições e obrigar a rede pública (SUS) de saúde a praticá-lo sempre que procurada pela mulher. Preserva o princípio da iniciativa privativa e exclusiva da mulher para decidir sobre a vida resultante da concepção, cercando-a de condições normativas, como, por exemplo, no caso de estupro, o registro policial de ocorrência ou laudo médico ou do IML (Instituto Médico Legal) e outras.
Como vêem, os dispositivos do CP não foram ainda considerados pela Suprema Corte inconstitucionais, como prescreve o artigo 5º. Consequentemente, estão vigentes. O PL 20/91 não é o instrumento correto, juridicamente, para derrogá-lo ou ampliá-lo. O CP é uma lei orgânica. O projeto de lei complementar seria o caminho sob a barreira interpretativa do artigo 5º.
Os defensores do aborto alegam que "a garantia da inviolabilidade da vida" se restringe "à vida após o parto". Os que escreveram esse dispositivo não se fundamentaram nessa linha. Considero-me entre eles. Redigimo-lo sob o princípio de que se estava instituindo, no Brasil, um novo Estado de Direito Democrático, sob o tripé de liberdade, legalidade e controle jurisdicional (juridicidade).
Ora, em nosso entendimento, portanto, enquanto o Poder Judiciário não decidir sobre a inconstitucionalidade ou não do disposto no Código Penal e não definir para efeitos legais que a vida começa após o parto -para a ciência, ela se inicia no momento da concepção; para a religião, por ser um dom de Deus, o homem não pode interrompê-la-, defronta-se o Congresso com as barreiras da injuridicidade e da inconstitucionalidade.
O aborto é criminalizado, restritivamente, pelo Código Penal, como já citei (artigo 128 e outros). Não é sem razão que o colocou no capítulo dos crimes contra a vida, e as restrições, fora dele.
O aborto legal, pois, assim insinuado pelo projeto, como está escrito é porta aberta à ampliação de sua prática.
Superados os impedimentos, só lei complementar será o instrumento legislativo para tratar do aborto, observados os conteúdos das normas -no caso, a lógica e a ética.
É, pois, fora de dúvida que a complexidade da matéria nos impõe uma conclusão: em direito, o aborto é de difícil normatização. A permissão legal generalizada e sem o controle jurisdicional é o caos. Tratá-lo, em direito, só em termos.

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