São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Um exemplar perdido

FERNANDO DE BARROS E SILVA

especial para a Folha "A lembrança mais remota que guardo de Paulo Emilio prende-se à Revolução de 30", escreveu Décio de Almeida Prado. "Creio que ouvi falar pela primeira vez de Paulo Emilio ali por 1938. Alguém me contou que era amalucado, comunista e havia toureado um bode na Cidade Universitária de Paris (o que ele confirmou mais tarde)", escreveu Antonio Candido.
Os dois amigos de juventude de Paulo Emilio foram os responsáveis pelos depoimentos mais esperados e mais povoados de passagens sentimentais durante o encontro "Paulo Emilio Ano 80", realizado em outubro último.
Gilda de Mello e Souza, mulher de Antonio Candido e também amiga de Paulo Emilio, deveria ter participado da mesa. Não pôde por motivos de saúde.
Candido foi o primeiro a falar. Escolheu como assunto a atividade política de um intelectual que, segundo suas palavras, é "dessas pessoas que Deus faz e quebra a fôrma, pelo conjunto de qualidades interessantes e originais" que é capaz de reunir.
Décio elegeu como tema a única obra ficcional de Paulo Emilio, "Três Mulheres de Três PPPês", publicada em 1977, ano de sua morte.
O crítico teatral revelou como há nas três novelas que compõem o livro várias referências, veladas ou quase, provocações bem-humoradas e alusões aos companheiros de geração que, junto com Paulo Emilio, participaram nos anos 40 da criação da revista "Clima", em torno da qual gravitou a elite intelectual paulistana naquela década.
Candido contou como o contato de Paulo Emilio com o intelectual italiano Andrea Cafi, durante sua primeira viagem à Europa, no final da década de 30, foi decisivo para formá-lo politicamente. Essa influência, disse, iria se estender à geração de "Clima" e ser decisiva na sua própria formação.
Cafi havia participado da revolução bolchevique de 1905 e era amigo pessoal de Lênin. Pregava, nas palavras de Candido, que era "preciso pensar um novo socialismo, adequado às exigências da sociedade de massas". Dizia ser "preciso agir no presente e nas relações cotidianas de acordo com o ideal que se visa".
Cafi, prosseguiu Antonio Candido, "escrevia muito e nunca publicava. Exercia nos cafés de Paris uma espécie de método socrático de convencimento dos jovens, era mestre sem ser professor". São traços de personalidade, disse ele, que Paulo Emilio incorporou e trouxe para o Brasil, abrindo a possibilidade de se pensar o socialismo de forma nova e heterodoxa.
Personagem literário Quando tomou a palavra, Décio disse, surpreendendo várias pessoas, que era um dos personagens de "Três Mulheres de Três PPPês". "Estou no livro, ninguém percebe que sou eu, mas eu sei que sou eu", disse, provocando risos.
Mostrou como na primeira novela, "Duas Vezes com Helena", há uma brincadeira com Antonio Candido na personagem de um professor de teoria literária que suborna um garçom. "Como se sabe, nosso crítico nunca subornou ninguém", disse sorrindo.
Na segunda novela, "Ermengarda com H", prosseguiu Décio, ele mesmo aparece como "Pradinho", um personagem secundário que frequentava a piscina da casa da protagonista, membro da aristocracia paulistana.
Na terceira novela, "Duas Vezes Ela", considerada o ponto alto do livro, é a geração de "Clima" que aparece satirizada na figura de jovens intelectuais que "riam muito, caçoavam uns dos outros e sobretudo de alguns nomes respeitáveis da literatura e da política".
Uma das forças do livro, sustentou Décio, é o contraponto entre o conservadorismo tacanho do narrador-personagem e o espírito livre e desabusado do autor, que encerrou assim uma vida sob vários aspectos luminosa como convém aos grandes mestres, gargalhando a respeito de si mesmo.
(FBS)

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