São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A permanente memória do cinema

RUDÁ DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os primórdios da Cinemateca Brasileira foram bastante esquecidos. Sua participação cultural nas últimas décadas, acompanhada de inúmeros eventos chamativos, obscureceu o próprio passado. Pior, toda a documentação sobre seus primeiros tempos foi perdida no incêndio que sofreu em 1957. Seu começo não representou apenas um período de formação da consistente instituição de hoje, mas revela uma significativa atuação cultural na época.
Esse tipo de desmemória tem sido comum em relação a fatos ocorridos nos anos 40 e 50, já que nas décadas seguintes despontaram explosões culturais que abalaram a sociedade convencional, como a do movimento libertário da juventude, o desembaraço sexual, a rebeldia, o engajamento político, tudo refletido nas expressões artísticas dos anos 60 ou 70.
Ainda assim, a época aqui tratada, a do pós-guerra, representa para nós uma força renovadora que mudou o feitio do país. A abertura democrática com o fim do Estado Novo, o início do desenvolvimento tecnológico e industrial, as profundas mutações urbanas e populacional desta cidade proporcionaram significativas transformações sociais.
Após a exaustão da catástrofe bélica, o espírito começava a renascer e nossa atenção continuava voltada à Europa e aos Estados Unidos, acompanhando os efervescentes fatos culturais da ocasião. Chegava-nos o existencialismo como curiosidade ou filosofia; os primeiros filmes neo-realistas, Calder, Malraux, Miller. Fugindo ao provincianismo da nossa cidade, tiramos a gravata obrigatória para ingressar nos cinemas, deixamos de lado o chapéu. Conceitos artísticos eram revistos. Novos criadores borbulhavam em ansiedade. Em tal clima, São Paulo tentava esquecer a província atirando-se de cabeça no espírito desenvolvimentista que chegava também às questões das artes.
Assim entramos no grande período de formação das instituições, das infra-estruturas que, paulatinamente, adentraram os anos 50. Foi a época do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), da Escola de Arte Dramática, da Vera Cruz, dos museus de Arte e de Arte Moderna, da Bienal, da PUC (Pontifícia Universidade Católica), da consolidação da USP, do Foto Cine Clube Bandeirantes; até mesmo a formação de locais específicos para encontros informais dos intelectuais, como o salão de chá da Livraria Jaraguá, o Clube dos Artistas, o Nick Bar.
Inserida nesse contexto, a criação da Cinemateca deu-se há 50 anos, com a fundação do Clube de Cinema de São Paulo. Não seja confundida esta Sociedade com o primeiro Clube, de igual nome, criado por Paulo Emilio cinco anos antes, em 1941, na Faculdade de Filosofia. Este durou pouco, devido ao seu fechamento pelos órgãos repressivos do Estado Novo.
Em 6 de novembro de 1946, houve a primeira sessão do Clube de Cinema de São Paulo. Foi exibido o filme "O Águia", dirigido por Clarence Brown, com Rodolfo Valentino. Isto deu-se no auditório de 45 lugares, do Consulado Americano, no largo São Francisco. Havia apenas um projetor, o que obrigava a exibição interromper-se para troca de rolo a cada dez minutos. Ainda nas mesmas condições nesse final de ano foram apresentados "'M' - O Vampiro de Dusseldorf" de Fritz Lang e uma antologia intitulada: "Retrospectiva do Cinema Americano - 1897 a 1937".
Mas foi um mês antes, em 7 de outubro, conforme constatam Mário da Silva Brito, do "Jornal de São Paulo", e Richmond, na Folha da Manhã, que houve a primeira reunião para a criação do Clube, com a presença de uma dezena de pessoas, entre as quais Almeida Salles, Rubem Biáfora, Tito Batini e B.J. Duarte. Numa segunda reunião, mais formal, em 1º de novembro, os interessados compõem uma diretoria provisória, que se confirmará mais tarde e permanecerá com os respectivos cargos por cerca de duas décadas: Francisco Luiz de Almeida Salles, presidente; Múcio Porfírio Ferreira, secretário e João de Araújo Nabuco, tesoureiro.
Já em suas primeiras reuniões o Clube mostra sua vocação arquivística com propostas de criação de acervo de filmes, biblioteca, além de planejar intercâmbio com a filmoteca do MoMA de Nova York (a única que os participantes tinham conhecimento). Tais pretensões, diante da realidade dos primeiros passos, levava o grupo à visão premonitória de acordos com instituições mais sólidas, como a USP ou o futuro Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Contudo o que mais caracterizou o Clube em seus primeiros anos de vida foram suas atividades, seus debates e as polêmicas. Estávamos no tempo em que o cinema impunha-se como espetáculo de massa, e a ignorância levava grande parte da intelectualidade local a resistir ao fato de o cinema ser arte.
A crítica cinematográfica no Brasil era nascente, mas apaixonada. Em relação às tendências estéticas do grupo, enquanto alguns, entre os quais se destacava Biáfora, tendiam à uma programação que possibilitasse uma nova leitura do cinema, especialmente a do americano, outros, como B.J. Duarte, forçavam pela descoberta da nova cinematografia européia ou pelo filme mais intelectualizado. As tendências por um cinema mais puro em sua linguagem específica, muitas vezes confrontavam-se com aquelas que buscavam nos filmes a expressão de valores poéticos, plásticos, literários ou reflexos ideológicos ou sociológicos. Tal radicalismo gerava, mais do que o equívoco, a animação.
Participavam dos debates intelectuais de primeira linha. O principal coordenador destes foi Lourival Gomes Machado, diretor do Departamento de Cursos e Conferências do Clube. E o maior divulgador foi B.J. Duarte, que, em seus famosos rodapés jornalísticos, reproduzia literalmente muitas das discussões realizadas após as exibições dos filmes. Exemplo foi "Ivan, o Terrível", que mereceu debate prolongado, editado em seguidos rodapés de "O Estado de S. Paulo".
A programação do Clube nesse período era eclética, mais por falta de opções do que pela procura de atendimento a um público diversificado. Na verdade, havia certa tendência restritiva, quando alguns sócios procuravam apregoar a limitação das exibições do Clube apenas aos iniciados. Sem dúvida, era uma mistificação cultural do cinema, em contraposição ao modelo do espetáculo vigente. No entanto, essa atitude exclusivista refletia também a pobreza cultural da cidade; a falta de oportunidades e de eventos, cursos, seminários que permitissem o aprofundamento dos temas.
A unanimidade ficava com os clássicos da história do cinema, pois todos os associados estavam ávidos pelo conhecimento dos filmes que só conheciam por meio das poucas informações disponíveis.
Após as primeiras exibições circunstanciais, no Consulado, Biblioteca Municipal etc., o Clube conseguiu, mediante acordo com o DEI, Departamento Estadual de Informações (antigo Deip), realizar suas sessões com bons projetores e regularidade, em seu auditório (r. Antônio de Godói). Ali foi muito bem-sucedido com suas projeções, conferências e debates.
Todavia o acerto não durou nem sequer um ano. Quando, em 27 de setembro de 1947, os sócios foram assistir a "A Máscara de Dimitrius", de Jean Negulesco, deram com a cara na porta, onde havia, sem maiores explicações, uma portaria do novo diretor do DEI cancelando as atividades. A repercussão do fato foi enorme, passando pelos jornais, chegando à Assembléia Legislativa e ao 2º Congresso de Escritores de Belo Horizonte. Não adiantou, o Clube voltou às sessões improvisadas.
Apenas no ano seguinte, conseguiu novo local fixo, no grande auditório do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, à rua Almeida Júnior. Para o funcionamento nesse local, houve a necessidade de instalação de cabine de projeção. Isso foi resolvido com a colaboração de Francisco Matarazzo Sobrinho, que possibilitou a aquisição de projetores novos. Cicillo estava envolvido no processo, pois nessa época o Clube vinha mantendo entendimentos com o futuro Museu de Arte Moderna para, posteriormente, transferir suas atividades e sede para esse local. Levando os projetores, claro!
Foi uma grande retomada. As sessões semanais no Círculo Esotérico iniciaram-se com a pré-estréia de "Stairway to Heaven" de Michael Powell, em 9 de abril de 48. Ali o Clube manteve sua regularidade com filmes como "Vive-se uma Só Vez", "Almas Perversas", "Retrato de Mulher", "Nanouk, o Esquimó", de Flaherty, "Carícia Fatal", de Milestone, "Crime em Paris", de Clouzot, "Monsieur Verdoux", de Chaplin, "A Batalha dos Trilhos", de Clement, "A Bela e a Fera" de Cocteau.
As reuniões do Clube tinham um aspecto familial, já que os interessados pelos eventos culturais em São Paulo eram limitados. As pessoas se encontravam, conversavam, era também ato social. Gilda Salles Gomes, mãe de Paulo Emilio, as frequentava, onde encontrava amigas e amigos de Paulo, e por carta relatava os acontecimentos ao filho, que morava na França. Almeida Salles, Lourival e outros também mantinham-no a par da evolução da associação e tornaram-no representante do Clube de Cinema em Paris.
A correspondência com Paulo Emilio e as relações com alguns órgãos internacionais elucidaram os conflitos entre cineclubes e cinematecas na Europa e a importância de um relacionamento com a Federação Internacional dos Arquivos de Filme, a Fiaf, a fim de possibilitar ao nosso Clube consolidar-se como arquivo, com o apoio e filmes dessa Federação.
Paulo Emilio estava absolutamente convencido de que este seria o caminho e tentava acelerar o processo, pois já representava o Clube na Fiaf. Isto irregularmente, pois era necessário que deixasse de ser clube e Paulo insistia sobre a necessidade de mudança da denominação "clube de cinema" para "filmoteca", "cinemateca" ou "museu". Diante das indecisões do Clube, e sendo no momento Filmoteca de São Paulo o nome mais consensual cogitado para mudança nominal (ou criação de outra sociedade civil), este acabou servindo de "nome fantasia" para dar cobertura a Paulo Emilio.
Com tal denominação o Clube passou a ser membro provisório da Fiaf em 1947, e Paulo Emilio, seu representante, chegou a ser membro do Comitê Diretor da Federação em 1948. Não sei como teria conseguido sem apresentação de nova documentação oficial para substituir a do Clube, mas imagino que a artimanha teve participação especial do célebre Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa e da Fiaf, já que seu estilo era criar situações de fato, para depois resolver.
Se na Europa as relações pareciam normais, em São Paulo o problema persistiu quando o ajuste com o MAM chegou às vias de fato. O apego pela entidade e o temor da perda de autonomia, em uma aliança com o já potente museu nascente, acabou levando o Clube a estabelecer um intrincado acordo, no qual se criou uma comissão de cinema do museu.
Esta nada mais era do que a própria diretoria do Clube. Ainda assim, foi necessária a intervenção diplomática de Almeida Salles, presidente do Clube e colaborador de Cicillo na estruturação do museu, para que se chegasse a certo clima de confiança. Não é necessário muito esforço para se deduzir que, como em qualquer caso semelhante, o MAM teria intenções de absorver -para não dizer engolir- o Clube e sua capacidade técnica, e este estava procurando dar um passo significativo sem perder seu poder.
Resumindo, o resultado foi o seguinte: o Clube e o MAM passaram a realizar suas atividades cinematográficas em conjunto, a administração financeira ficou a cargo do MAM, e os sócios de ambos adquiriam iguais direitos. Foi um casamento imperfeito que perdurou com perfeição, pelo menos durante os cinco primeiros anos.
Como a orientação técnica da Filmoteca seria do Clube, este encerrou suas atividades no Círculo Esotérico no final de 58, para se dedicar à preparação das atividades no novo local e à montagem da sala de projeção no MAM, o que foi feito com a participação do arquiteto Vilanova Artigas. O acervo de livros, documentos e filmes também ficou no MAM, sempre à disposição dos sócios do Clube e depois foram incorporados ao acervo da Cinemateca.
A primeira exibição na Filmoteca do MAM foi em 10 de março de 49, com a exibição de dois primitivos franceses e de "Joana D'Arc" de Dreyer, com reapresentações de sucesso durante o mês. Em seguida entrou um programa dedicado à "Avant-Garde" francesa.
As exibições continuaram rotineiramente, sendo que a programação mais importante da Filmoteca naquele período foi a "1ª Retrospectiva do Cinema Brasileiro", organizada em 1952 por Benedito J. Duarte e Caio Scheiby, este então funcionário. Foi o primeiro conjunto de filmes que permitiu uma reflexão mais concreta sobre a história do nosso cinema. Dois anos mais tarde, viria a 2ª Retrospectiva, que, além de revelar "Ganga Bruta", obteve notável repercussão.
Com o início das atividades no MAM, o Clube de Cinema não se extinguiu, mas o que vinha a público na imprensa e nas referências dos frequentadores era o nome da Filmoteca, mesmo se esta continuava a ser tecnicamente conduzida por dirigentes do Clube. Isto causou certa confusão, deixando a impressão que o Clube e a Filmoteca foram instituições distintas, em tempos diversos.
No entanto, nunca houve ruptura. Mesmo após 1954, com a chegada de Paulo Emilio, para ser conservador da Filmoteca. Este voltou conduzido, com plena aprovação do Clube, por Almeida Salles e Lourival Gomes Machado, após romperem em altas esferas certos preconceitos de natureza política. Evidentemente que, com a criação de cargos profissionais de direção técnica, o conservador e seus adjuntos, os dirigentes do Clube, assumiram um papel mais discreto, porém de íntima colaboração. Isso perdurou até o momento em que, em 1956, por meio de uma acordo de cavalheiros entre o MAM e o grupo Filmoteca/Clube, criou-se a Sociedade Civil Cinemateca Brasileira, voltando os diretores do Clube a assumir os cargos diretivos, agora na Cinemateca, deixando de vez o Clube para a história.
Em 1954, comemorando o 4º Centenário de São Paulo, quando Paulo Emilio e eu passamos a integrar a equipe da Cinemateca, houve a grande festa das grandes mostras de cinema, recursos financeiros e a vinda de grande acervo de filmes estrangeiros. Aí já entramos na história mais conhecida da Cinemateca, com seus belos momentos, suas tragédias, sua rotina plena de problemas, seus filmes e documentos salvos ou condenados. Comemoramos agora seu quinquagésimo aniversário. Longa vida!

Texto Anterior: Um exemplar perdido
Próximo Texto: Poesia é opção para o Natal
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.