São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Drácula e as suas seduções

ANTUNES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Existem duas formas de se entender uma obra de arte. A primeira forma é aquela onde tentamos buscar o seu significado; comentando, interpretando, reescrevendo o objeto até o infinito. A outra é aquela da intensidade, onde não há nada a explicar, nada a compreender ou interpretar, como uma ligação elétrica, onde é feito ou não o contato, onde o fluxo de energia se estabelece imediatamente, conectando o espectador e a própria obra..." (Gilles Deleuze)
O público e a crítica rejeitaram o espetáculo "Drácula e Outros Vampiros" na sua estréia. Eu entendo por quê. Todos esperavam uma coisa, e eu não correspondi à expectativa deles. A crítica brasileira assim como toda a crítica mundial é formada pela universidade, e sua expectativa está de acordo com seu papel. O teatro, como toda obra de arte, é feito nos dias de hoje como a citação da citação da citação, e acredito que o papel das universidades ou do saber estabelecido é a tentativa de preservação da cultura, como os monastérios medievais.
Se eu fosse um catedrático, talvez eu tivesse a mesma atitude perante a loucura que existe dentro do teatro brasileiro e contemporâneo. Porém não podemos esquecer que o teatro é arte, e, para que o teatro seja considerado como arte, ele tem que se renovar permanentemente, buscando conquistar novos horizontes, numa tentativa de saber aquilo que nós ainda não sabemos. Geralmente o teatro está sendo feito com fórmulas. Eu sei que defender e preservar as fórmulas é importante, mas as coisas não se constroem somente por meio de esquemas preestabelecidos, e não devemos ficar defendendo a cultura como um clã medieval, lutando para preservar seu mosteiro e seus arquivos, com todos aqueles manuscritos cheios de iluminuras.
A coisa viva
"Depois de ter estabelecido estas coisas, eu pensava entrar no porto, mas quando me pus a meditar sobre a união da alma e do corpo, fui como que lançado de volta ao alto mar." (Leibniz)
Eu não acredito em verdade definitiva. A verdade é sempre circunstancial, conveniente em um determinado momento. A duração da verdade, hoje, é no máximo de dois verões. Sem nenhuma dúvida, hoje as coisas estão tão desandadas, que nós podemos dizer que estamos fora da história como a entendíamos até então. A universidade deve segurar as rédeas da sociedade à medida que a cultura é seu fundamento, mas eu, como artista, não pretendo ser apenas mais um tomo em uma prateleira, pois o teatro é uma coisa viva e não pode ficar isolado em laboratórios e redomas de vidro.
O que eu pretendo ser sempre é um vírus no sistema, eu quero ser sempre o vírus de todo e qualquer sistema. Quando eu tenho um sistema, eu faço um espetáculo; logo em seguida já coloco o vírus e liquido com aquele sistema.
A história do homem
"A única revolução possível é aquela do indivíduo." (Carl Gustav Jung)
O processo de individuação é o mesmo processo do teatro, o movimento de descobrir e enfrentar aquilo que nós ainda não sabemos, numa atitude como aquela dos heróis, tão bem descrita por Campbell. Cada um tem que buscar o conhecimento, atravessando abismos, lutando com animais ferozes e dragões, para conseguir encontrar o Santo Graal, e daí trazer este Santo Graal à comunidade. O teatro, como toda forma artística, tem que sofrer o mesmo processo, um processo de individuação, e não uma atitude de preservação, de conservação.
O teatro tem no seu bojo coisas futuras sobre a humanidade, porque o teatro representa o homem. É a própria história do homem, aquela que tem de ser inventada e reinventada por ele a cada dia. Um processo ininterrupto de vida e morte, e este é o sentido exato da palavra carnavalização (1), algo que tem a ver com morte e renascimento. Meu teatro sempre está relacionado com a carnavalização, que não tem nada a ver com escola de samba.
A minha relação com o Oriente é um exemplo concreto e pessoal desta idéia da carnavalização.
Eu tinha uma idolatria em relação à Índia, era uma relação fantasiosa, uma atitude romântica da minha parte. Existia a mitologia hindu, concreta, que encontrei quando fui à Índia, e aquela mitologia que estava dentro de mim. A minha ida à Índia me permitiu descobrir que você não pode adorar nenhum mito externo a você, mas sim que precisa estar o tempo todo em contato com os seus próprios mitos.
A partir do momento em que você começa a adorar, você começa a fantasiar, a entrar em um processo paranóico de adoração. Essa viagem me levou à compreensão de que você deve queimar todas essas coisas exteriores e fantasiosas, para alcançar uma relação limpa e real com os seus mitos que estão dentro de cada um, com esses 360 graus de mitos que nós temos. Discutir com eles, racionalmente, como ocidentais que somos, até alcançar um outro patamar para o homem. Isso confirma mais uma vez algo que pode ser visto nos meus espetáculos, a minha descrença em livros definitivos, frases definitivas e idéias absolutas.
A insubstancialidade, a incondicionalidade e a impermanência -o tripé búdico-, é isso que me interessa, algo de que não abro mão. Tudo é ilusão mesmo!
Eu sei que o pai do teatro é Dioniso, mas o pai da ilusão é Shiva, o que é fundamental.
Esse maniqueísmo da sociedade contemporânea, com seus movimentos neofascistas, neonazistas, a direita radical crescendo, me incomoda muito, mas me interessa muito mais o jogo disso tudo do que os fatos propriamente ditos. Se nós estivéssemos em uma ditadura, então eu seria dionisíaco, pois eu teria que liquidar com o sistema. Em um momento de exceção eu seria anárquico, tentaria quebrar o sistema, mas agora, nessa pré-democracia, eu não acredito na função social do artista, fazendo uma coisa dirigida, burramente direcionada, tentando impor outra verdade, pois isto não leva a nada.
Para mim, a obra de arte deve chocar, perturbar, no sentido de criar um movimento, apresentar o desconhecido, trazer uma fonte, criar um jogo. É nesse sentido que eu sou shivaísta, a dança de Shiva é a representação plena do jogo da vida. O que seria a vida se não houvesse o movimento? O movimento em si é jogo. Por isso nós nunca vamos ter a verdade definitiva, porque a hora em que nós a tivermos, tudo congela. No momento em que for definida a verdade, o jogo acabou, daí tudo paralisa, e a vida acaba.
Ser e não ser
"Na sociedade pós-moderna Édipo foi substituído por Proteu." (Michel Mafesolli) (2)
"Drácula" deve ser visto pensando nesta idéia de jogo. O espetáculo é para ser naquele momento, quando termina ele se esvai. É dinamitado da sua cabeça, restando somente uma sensação, como algo que você tivesse vivenciado. As coisas acontecem e depois devem ser atomizadas, e isso eu chamo ilusão. O espetáculo existe enquanto você o vê, como um sonho, que é, enquanto estou sonhando, onde as imagens estão presentes e permanecem durante alguns segundos, para logo depois serem esquecidas, desaparecerem. O espetáculo "Drácula" é e não é.
Antigamente, a questão era ser ou não ser, uma questão ética que vinha desde Socrátes, e ainda hoje tentamos conservá-la. Hoje, eu acredito que a posição correta é ser e não ser, e o espetáculo é isso, baseado naquelas idéias da impermanência, da incondicionalidade e insubstância: o jogo infinito. O espetáculo não suporta uma via única de decodificação, e essa é uma das decodificações possíveis, que é a da ilusão, que é concretamente não sendo.
O arquétipo do vampiro
"Como quem vê de longe uma batalha, como quem aspira o ar salobre e ouve o afã das ondas e já pressente o mar, como quem entra em um país ou em um livro, assim, anteontem à noite, fui assistir a uma representação de o 'Prometeu Acorrentado' no alto teatro de Epidauro.
Minha ignorância do grego é tão perfeita como a de Shakespeare, salvo nos casos das muitas palavras helênicas que designam instrumentos ou disciplinas ignoradas pelos gregos. A princípio tratei de recordar versões castelhanas da tragédia, lidas há mais de meio século. Logo pensei em Hugo e Shelley e em alguma gravura de Titã amarrado à montanha. Logo me esforcei em identificar uma ou outra palavra. Pensei no mito que já é parte da memória universal dos homens. Sem me propor e sem prever, fui arrebatado pelas duas músicas, a dos instrumentos e a das palavras, cujo sentido me era vedado, mas não sua antiga paixão (...) Muito além dos versos, que os atores, creio, não escandiam, e da ilustre fábula, esse profundo rio, na profunda noite, foi meu." (Jorge Luis Borges)
A viagem à Índia me permitiu vislumbrar que em todo o mundo os arquétipos persistem e estão intrinsecamente ligados ao dia-a-dia de cada um, não com toda aquela energia, aquela capacidade de constelação que eles possuem, mas dissolvidos, esfumaçados nos estereótipos. Se eu não tivesse ido até a Índia, eu tentaria buscar o arquétipo do vampiro, mas o que eu trouxe foi o seu congelamento, sua disseminação, o estereótipo do velho e conhecido conde Drácula. E estou brincando, jogando com tudo o que está atrelado a esse mito na sociedade contemporânea.
"Drácula e Outros Vampiros" é a pulverização de todos os arquétipos e sua densidade. É também uma taxinomia alucinada de alguns estereótipos e seus jogos.
O sentido do espetáculo pode estar vedado a alguns, mas a paixão toma conta de toda a platéia. O fascinante nesse espetáculo é sua sintaxe, e foi isso o que as pessoas estranharam, elas queriam a linearidade, e ele acontece aos saltos, em encadeamentos, em idas e voltas, como as histórias em quadrinhos. Os bons "comics" hoje em dia têm citações e referências das mais ricas, Edgar Allan Poe, Mallarmé etc. O espetáculo opera o tempo todo com esta cultura "pop cult".
Fogos-fátuos
"Cuidado com o homem de um livro só." (Goethe)
Ou você tem uma cultura razoável para entender todo o processo histórico que está em cena: as guerras, o nazismo, os mecanismos da direita ao longo dos tempos, representando isso ter todos os livros, ou você não tem livro nenhum. Somente destas duas formas é possível gostar. "Drácula" é um grande jogo teatral, é como ler um gibi, um bom gibi.
"Drácula" também é um desterro, talvez o mesmo desterro que Dioniso teve que enfrentar na Índia. Desterro da palavra, que talvez seja a coisa que eu mais goste no teatro, e por ela ser tão conspurcada hoje em dia, eu levei as últimas consequências sua exclusão, operando somente com "onomatopéias", outro recurso muito utilizado pelas histórias em quadrinhos.
Nesse momento não me interessa mais reinventar a linguagem, mas revelar os conflitos, como fogos-fátuos, que brilham na escuridão. Talvez os textos em "off" que pontuam todo o espetáculo, trechos de Blake, Baudelaire, Silvia Plath, que são ditos numa voz estrangulada de morto-vivo, sejam relâmpagos, centelhas, ainda a dez metros abaixo da terra, mas já se preparando para a ressurreição em um futuro próximo.

NOTAS: 1.O conceito de carnavalização foi criado pelo ensaísta russo Mikhail Bakhtin em seu livro "A Poética de Dostoiévski". A idéia principal parte do conceito original do carnaval e suas implicações. Em um determinado dia do ano, o rei abdicava de seus direitos e deveres absolutos e naquele mesmo dia era coroado o bufão da corte, seu antípoda. Durante o reinado do bufão todos os valores estabelecidos eram abandonados e outras regras entravam em vigor. Era uma forma primitiva de renovação de tudo, de todo o corpo social.
2. Proteu, herói grego, é um dos filhos de Nereu e Anfitrite e assumia em cada situação uma nova forma, diferente e conveniente para aquele momento. Alguns diziam que, caso ele fosse surpreendido no momento de sua transformação, ficaria paralisado e poderia responder a todas as questões. Não existem relatos deste aprisionamento.

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