São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 1996
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Pedaços de um manifesto...

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA

O Ministério Público nos intimou a comparecer ao fórum da cidade onde nasci, Araraquara, para, sete atores, sermos julgados por vilipêndio à eucaristia na encenação de "Mistérios Gozosos", de Oswald de Andrade.
Sete atores não passaram por isso à toa.
O processo de Araraquara não é provinciano, pois revela um "vuduzamento" positivista, chamado hoje nova ordem liberal. A coisa aconteceu numa cidade do interior de São Paulo, mas é foco de uma ação contemporânea, pós-moderna, iluminação do novo imperialismo universal que está querendo botar as patas no corpo vivo, insubmisso, ressurrecto do teatro.
Mas o teatro, principalmente nos momentos em que querem impingir o embuste de uma pequena visão de mundo, tem como condição ser território livre, lugar sagrado de uma eterna "desordem" instituída, ONU da liberdade do corpo, onde ninguém toca.
Nós, antropófagos, estamos nos lixando para a eucaristia oficial católica. Criamos nossos próprios ritos, com poesia, Oswald, Artaud, Eurípedes, personagens, situações, luzes, roupas, nossas vidas.
Mas a epifania do teatro não é visível para a grosseria de nossos acusadores. Somos, para estes, toscos "elementos que sobem ao palco e põem uma banana no pênis, outro que morde"; ou, como nas "Bacantes", que "avançam em cima de uma pessoa do público e tiram a roupa à força e pronto".
Essa leitura parva fabrica intencionalmente uma paranóia pública contra todo o nosso sofisticado requinte teatral, criado na luxuriante precariedade radical, para que a nossa arte não seja levada em conta, seja desvalorizada, aviltada. Esse vilipêndio da fé cênica é o responsável pela criminosa condição de miséria absoluta imposta ao atual teatro brasileiro.
Por isso, diante desse "vuduzamento" da ordem mundial que jaz no Ministério da Cultura, nas secretarias políticas, polícias de cultura estatais ou privadas, nos marketings, que submetem tudo ao mandado, ao consenso, a lógica interna do capitalismo, é preciso tomar uma posição política clara, cruel, como se teve que tomar com o fascismo, o nazismo e a ditadura militar no Brasil.
Araraquara nos fez ver novo para tomarmos a posição política de defender o teatro dessa submissão à ditadura do mercado e de defender especialmente o corpo do Teatro Oficina Uzyna Uzona, porque, quer se queira ou não, nosso corpo de atores e nosso corpo físico no espaço arquitetônico não se deixaram comer por esse "vuduzamento". E é justamente por isso que estão querendo dobrá-lo. Não temos somente 35 anos de vida, mas milênios.
Acusamos:
1) a crueldade mórbida da atual política cultural oficial do Estado de São Paulo de dar o cano no convênio de R$ 260 mil por ano para manter o Teatro Oficina.
2) os e as burocratas, como a Anali Alvarez, da Secretaria de Cultura do Estado, que empatam tudo para que entremos no regulamento sem projeto dos teatros do Estado de São Paulo. Essa funcionária declarou, conforme testemunho do diretor teatral Marcelo Fonseca, que, até o fim da sua administração, tiraria o Teatro Oficina das mãos do Zé Celso.
3) os executivos do Baú de não quererem nem saber do maravilhoso projeto urbanístico do "oásis de fertilidade pública" que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha bolou, para contracenar com o espaço da "fatalidade" do shopping de lazer que o Baú da Felicidade quer construir no quarteirão de Silvio Santos, ou de Santos Silvio -o nome tanto faz.
4) o público de celebridades, gente de bens que não vê na cena do estraçalhamento uma cena de teatro, só o medo que vem de sua tentação de ser posta a nu. Quem não quiser não participa da cena, o teatro trabalha só com o desejo, mais nada. Faz quem quer.
5) acuso, mas desacuso, porque Dionysos não barra ninguém, todos podem ser "desenvuduzados".
Nós temos uma história, uma justa, um programa, um projeto para o teatro brasileiro, ou melhor, nós somos um projeto vivo e estamos aqui com o desejo do poder da sua presença a favor dessa rara máquina coletiva do tesão, que é o de todo mundo. Ela não pode ser castrada à toa, por mera ignorância social. Teatro é filho do tempo. Dura enquanto a humanidade durar de desejo de vida e tiver, no momento justo, coragem de mostrar que tem osso...

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