São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Carteira de torturado

JANIO DE FREITAS

A boa intenção do ministro Nelson Jobim não contribuirá, apesar de sua inutilidade, para a superlotação do inferno, mas também não se presta a aliviar os suplícios infernais a que os estrangeiros são submetidos no Brasil, para legalizar no Ministério da Justiça a condição de residentes aqui.
Pode ser que a nova carteira de identidade de estrangeiro, lançada ontem por Jobim com os rapapés de praxe, reflita "a mais moderna técnica do mundo" em documentos identificadores. Pode ser, também, que passe a chegar pelo correio ao futuro portador. Mas Nelson Jobim e seu chefe de gabinete, o José Gregori de admiráveis ações pelo respeito a direitos sempre transgredidos, não sabem o que se passa entre o pedido e o recebimento milagroso da carteira.
São vários os casos, como o dos estrangeiros casados com brasileiras, de direito líquido e certo de residência e, portanto, do documento respectivo. Mesmo considerada a inércia dos burocratas, a consulta aos fichários e demais providências não exigiria mais de uma semana para a entrega da carteira. São necessários anos e anos, porém. Quatro, cinco, ninguém sabe quanto tempo: tudo depende da sorte de cada um e de quantas vezes compreendeu que os funcionários ganham muito mal.
O percurso do papelório é maravilhoso. Começa por ser localizado na Polícia Federal, que devia, no máximo, dar uma palavra sobre existência ou não, nos fichários, de algum registro contra o requerente. Preparar e emitir documentos não é função policial, muito menos em polícia que vive à míngua de agentes. Enfrentadas as longas esperas diante de balcões repelentes e, não há outro jeito, a má vontade clássica e afinal onerosa, os muitos retornos à repartição resultam no aviso de que o requerente deve aguardar uma visita de verificação de residência, que ocorrerá em algum dia dentro de três meses.
Não se sabe em que calendário são calculados os três meses, os quais, no nosso, não demoram menos de seis meses e podem chegar a um ano, ano e meio. O tempo não altera a inutilidade da visita: se o requerente estiver no endereço dado, isso não prova que de fato more ali; se não estiver, o agente indagará se algum vizinho o reconhece como morador, recebendo resposta que pode ter sido combinada. Mas sem esta visita fundamental o papelório não anda.
Feito o relatório do policial visitante, que demanda um número de meses incalculável, o papelório está preparado para uma grande aventura: viaja da cidade do requerente para Brasília, onde aportará em um departamento específico do Ministério da Justiça. A viagem é para que alguém dê um parecer. O que exige frequentar por meses uma longa fila de requerimentos onde, com muita probabilidade, o processo será dado como extraviado. Acharam, enfim? Que bom, já pode entrar em outra longa fila, a de espera para publicação no "Diário Oficial" do reconhecimento, pelo governo brasileiro, do direito que em nenhum momento esteve em dúvida.
Calma, que por essa altura ainda estamos, se tudo correu bem, só com uns três anos de batalha e gastos. É necessária nova viagem do processo, de Brasília para a cidade de origem: a carteira vai ser elaborada e emitida pela repartição inicial da PF. A viagem leva um trimestre, que pode ser um semestre, e, ao seu fim, o requerente é informado de que, para datilografar seus dados e colar o retrato no documento de identidade, a PF precisa de mais três meses. Pelo calendário dela. Ao fim dos quais, haverá a constatação de algum probleminha que demandará nova ida do processo a Brasília, ou nova publicação no "D.O.", ou qualquer outra coisa que consuma mais um ano ou dois anos ou mais anos.
Como, porém, os estrangeiros de que falamos têm direito líquido e certo ao visto de residência e respectiva documentação, valerá a pena que tenham sofrido o diabo durante anos e anos, porque vão receber a sua carteira do Registro Geral de Estrangeiros indelével e com retrato colorido, pois que agora elaborada com "a mais moderna técnica do mundo".
Muito mais do que um documento, uma desgraça que figura entre as incontáveis obrigações torturantes mantidas por um governo atrás do outro.

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