São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Músico e fotógrafo recriam frutas de nossa terra

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estou aqui com uns livros que me pegam pelo umbigo da sensualidade doméstica. O primeiro deles, por incrível que pareça, é "Gilberto Gil - Todas as Letras".
Acho a letra de "Refazenda" a síntese da espera tranquila que deveria nos guiar no dia-a-dia. Bom para reflexão de fim-de-ano.
"Abacateiro... brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração... enquanto o tempo não trouxer teu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão."
Bonito. E o Gil canta a amada, ora, que se chama Flora, imaginando-a uma jaqueira postada à beira da estrada "velha, forte, farta e bela". Pelo chão muitos caroços como que restos de sonhos devorados. E imagine a mulher, já madura, com sabor de amora, e ele terá sono debaixo de sua sombra.
E mais juru-juru-beba e mara-maracu, maracujá e o melhor lugar do mundo é um figo maduro.
O outro livro é "Frutas no Brasil" de Silvestre Silva. Impossível que esses livros tenham alguma coisa em comum, pensarão vocês.
Mas têm. São aparentados por uma ligação profunda com o ser das coisas, por um saber esperar a sucessão de dias preguiçosos, pela alegria ao vislumbrar o súbito clarão da laranja, por saber suportar o negrume doce da jabuticaba.
Pois, então, o Silvestre é um fotógrafo, que além de cantar o pomar brasileiro com suas cores, traz aquela parte que precisamos para consulta, para ficar sabendo das coisas na teoria. Nome popular, abacateiro; nome científico, Persea americana mill; família botânica, Lauraceae; origem, América Central. E depois tudo o que você quiser saber sobre a fruta, explicadinho.
Num seminário de comida, na Inglaterra, levei tudo o que pude, de presente, para os "foodies" ingleses. Eles só se descabelaram para ficar com o primeiro livro de Silvestre, que se chama "Frutas, Brasil". Vão morrer de contentamento com o segundo, que tem uma versão inglesa, muito bem feita, para ser entendida em outros pagos.
E o Silvestre é um fotógrafo que passa seus dias na "refazenda". Esperando com a máquina pronta, na beira do riacho, que a flor se faça fruto. Quieto, enquanto amanhecem tomates e anoitecem mamões, à espera da presa.
Viaja de avião, carro e canoa, refazendo a guariroba, o araticum, o abiu.
Sabe o significado da palavra temporão com a calma ancestral dos mineiros e conhece o momento zen em que o tamarindo tem seu gosto azedo, cedo, e sabe com a certeza primitiva que o janeiro doce manga venha a ser também.
Nesse volume o Silvestre viajou por cocos. Buritis de casca envernizada espelhados na água, babaçus altivos, bacabas de leque, fachos vermelhos contra o azul do céu.
Há brejaúvas, coquinhos que viram pião para menino brincar e um mamãozinho do mato, o jaracatiá, que se põe para "serenar" a fim de soltar o leite.
O Silvestre não falou em juru-juru-beba, que faz bem ao figueiredo, segundo o Gilberto Gil. É que não deve ser fruta e sim um legumezinho amargo como jiló. Mas, se for fruta, o Silvestre já deve estar de olho nela, prenhe do terceiro volume, recolhido, na espera. E não há o que a gente queira mais do que a continuação do resgate do pomar brasileiro, inteiro.
Fruta por fruta e todas. E o Silvestre sabe que seremos sempre seus parceiros nesse itinerário de leveza pelo ar, refazenda, refazendo tudo.

Livro: "Gilberto Gil - Todas as Letras"
Organização: Carlos Rennó

Livro: "Frutas no Brasil"
Fotos: Silvestre Silva
Textos: Helena Tassara

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