São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 1996
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Interior recebe "crateras" de Nuno Ramos

CASSIANO ELEK MACHADO

free-lance para a Folha Imagine uma obra de arte exposta em praça pública em uma cidade de 38 mil habitantes, no interior de São Paulo. Esqueça.
Pense agora em um cenário de 40 mil m2 com 12 rochas de granito, de oito a 15 toneladas, encravadas em buracos de profundidades diferentes. Isso é Nuno Ramos.
O artista inaugura hoje, em Orlândia (370 km ao norte de São Paulo), a instalação "Matacão".
"Pela primeira vez estou realmente curioso", diz Nuno Ramos, 36, artista que já expôs em diversas bienais internacionais, como a de São Paulo e a de Veneza (Itália).
Foi na "biennale" italiana que a história de "Matacão", ou melhor, pedra solta, muito grande e arredondada, nome que Nuno garimpou na mesma pedreira de onde vêm as rochas, começou.
O artista confeccionou para essa mostra uma peça de 2.800 kg, de nome "Craca", que seria inserida em uma cratera. "Não me deixaram cavar o solo sagrado de Veneza", ironiza. A idéia de "entrar para o espaço da terra" continuou crescendo em Nuno Ramos.
Certa vez, em jantar com seu amigo Steven Binnie, as crateras voltaram à tona. Binnie, 41, atual prefeito de Orlândia, casado com uma artista e cunhado do crítico Alberto Tassinari, confessou a Nuno que não estava feliz com suas realizações culturais.
A prefeitura cedeu o maquinário pesado e a área. As rochas foram doadas por uma pedreira local, que as considerava inúteis.
Com a carta branca no bolso, Nuno cavou e soterrou seus projetos variadas vezes. "Foi um trabalho meio cego. O que eu faço tem uma idéia de forma um pouco elástica, que consegue aceitar modificações bem grandes", diz. Foram seis meses de guindastes, escavadeiras e basculantes.
Binnie, conhecido como Estevão, conta que o objetivo da obra é causar estranheza. Nuno explica que a idéia é mexer com a vida das pessoas, "ainda mais porque, em termos de arte pública, existe uma espectativa por um trabalho vertical, para cima. Como minha obra é horizontal e para baixo, acho que deve contrariar algum arquétipo".
Na opinião do artista, formado em filosofia pela USP, o interessante de "Matacão" é a relação entre a pedra e o buraco, "como se a forma da pedra imantasse o buraco que a recebe. Como se a forma pudesse se expandir".
Em "auto-análise", Nuno acha em suas obras lugar para a euforia e a tragédia, Carnaval e Cinzas. O artista hesita entre uma sensação eufórica com a situação geral da arte nacional e uma percepção de falta de trabalhos mais trágicos.
"É difícil saber até que medida temos que preservar algo que nosso amadorismo nos deu. O nosso caso é semelhante ao vivido pelo futebol brasileiro. Minha identificação é com o Pelé, não com o Garrincha. Não quero zelar pelo caçador de passarinhos, esse negócio cafona do medo do capital. Não queria trocar essa confusão heróica por um profissionalismo bobão", diz.

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