São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 1996
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Só Poirot poderia resolver o sujo enigma belga

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Deve haver mais de uma história de quando e como René Descartes formulou uma das verdades mais satisfatórias que o homem já deu a si mesmo, sobre si mesmo: "Penso, logo existo". Haverá histórias provando que a frase lhe veio em latim, em que filosofava talvez com mais naturalidade do que em francês: "Cogito, ergo sum".
A frase terá dado aos franceses uma crença maior neles mesmos do que em outros povos: graças a Descartes, eles, entre todos os povos, se haviam "pensado" pela primeira vez.
A idéia terá vindo de repente, não quando ele estava escrevendo filosofia em latim ou francês, mas quando, talvez, tomava um cálice de "calvados" numa certa mesa que havia no pomar.
Calvados é uma bebida forte, feita de maçã. Foi, ao que tudo indica, a primeira pinga, inventada depois da desobediência fatal de comerem os dois primeiros seres humanos o fruto proibido -guardaram as maçãs num pote, para nunca mais a comerem, e a fruta fermentou.
O trato que fez Sartre com os brasileiros, quando cá esteve depois de visitar Fidel em Cuba, ano 1959, é que não discutiria, conosco, filosofia, só política. Não ia perder seu latim entre infiéis e bárbaros. Os brasileiros que cogitassem primeiro, antes de serem e entenderem Sartre. Ou antes que transformassem a serra do Mar numa sierra Maestra, como previu um dia Jânio Quadros.
Mas totalmente Sartre não conseguiu escapar, e uma das poucas vezes em que o ouvi filosofar, me deliciei com o fato de que, referindo-se a Descartes, ele mencionasse "le cogito" como quem fala num lugar familiar qualquer, "les Champs Elysées, ou "la Madeleine", por exemplo.
Foi naquele instante que percebi como Descartes é parte da França, antes de ser do mundo inteiro. "Le cogitô", dizia Sartre, com aquela paixão francesa de acentuar a última sílaba das palavras.
Mas me perdi e para retomar o fio da meada vou pedir socorro a George Orwell. Grandes profetas, como Orwell, não se enganam no que prevêem ou erram por pouco. Identificam mal a cena. A idéia de que Big Brother estaria frequentemente nos olhando pela TV, mesmo que estivéssemos no banheiro, na privada, não se confirmou.
Mas a profecia de fato nos informara de que no mundo novo vindouro o impossível seria a solidão. Estaríamos sempre à vista. Não, necessariamente, porque um maligno e poderoso Big Brother quisesse nos acompanhar, mesmo enquanto evacuássemos: nós próprios é que íamos abrir mão da chatura de ficar sós.
Daí o mundo em que vivemos, de Nets, Internets, computadorismo permanente. Foi este o horror que Orwell denominou Big Brother. Um irmão nosso, interior, sempre acordado, com um enorme olho de Polifemo fagulhante no meio da testa. Ora, o Big Brother mata qualquer possibilidade de criação de um novo "cogitô".
Por que será que, de súbito, um país que até agora nos pareceu sério, puritano e exemplar parece estar dando o mau exemplo do desprezo e desinteresse do homem por si mesmo?
Quando a indústria da borracha dependia, princípio do século, da produção direta dos seringais, o rei Leopoldo da Bélgica criou o Congo Belga, no Zaire gigantesco. E estimulou lutas de "superioridade racial" entre tribos locais, entre os hutus e os tutsis, as quais duraram muito mais que os seringais e causam os piores massacres hoje em dia, para aborrecimento das Nações Unidas, que também não andam nada pacientes com seu próprio cogitô. Querem globalização e papo pro ar.
O pior é que a Bélgica, que fabrica o chocolate mais delicioso do mundo, está se dedicando, a fundo, à pedofilia, que é para mim o mais nefando e mesquinho crime que o homem inventou. O chocolate é para atrair as pequeninas belgas?
O caso mais horrendo, naturalmente, foi o crime -e a displicência com que foi tratado- de Marc Doutroux, que matou e ocultou os corpos de quatro moças de 8 a 19 anos -e o criminoso foi protegido, tudo indicando que em altas esferas o próprio primeiro-ministro, que é gay, é acusado de corromper meninos. O ministro das Pensões, Van der Biest, é acusado de assalto a inimigos, de corrupção.
Não conheço o interior da Bélgica, mas Bruxelas, com sua simples e lindíssima Grand-Place, me deixou sempre a lembrança de um dos versos mais bonitos de Baudelaire: "Luxe, calme et volupté".
Mas atenção: Baudelaire, antes de mergulhar, vivo, na paralisia que o manteve como morto durante anos (com sífilis, a Aids daqueles tempos) esteve na Bélgica e odiou o país. Não gostou das sopas, das comidas em geral, do francês que os belgas falavam, de nada. Estaria adivinhando alguma coisa?
Quem sempre se prezou muito da nacionalidade belga foi o detetive que Agatha Christie criou, Hercule Poirot, que invariavelmente protestava quando alguém o chamava de francês. "Je suis belge, belge, madame."
Quem adorava a Bélgica, onde se exilara ao escapar à perseguição nazista, era Otto Maria Carpeaux, que conhecia a fundo a literatura belga. Apesar de saber que Carpeaux sabia tudo e que os belgas devem ter obras que possivelmente os redimam um pouco dos horrores que causaram ao Zaire, não conheço uma única.
Conheço os horrores de agora, e uma espécie de símbolo de uma Bélgica de repente meio asselvajada, abandonando o cogitô e soltando a franga.
Estou pensando no primeiro ator belga de que tenho notícia, Jean-Claude Van Damme. Só tenho visto trailers de filmes dele na TV -e ele, uma espécie de miniatura de Schwarzenegger em versão meio sinistra, sempre aparece esbordoando todo mundo feito um possesso.
Pois acaba de pedir arreglo. Está internado numa clínica para se curar do uso de drogas. Ainda bem que não entrou em nenhuma dança macabra de pedofilia. Van-Damme, que parece ter a idade mental de um menino briguento, é casado e pai de filho.
Não mergulhou no charco em que parecem apodrecer tantos belgas outrora respeitados. Vamos ver se, agora, reaprendem a coaxar, como outrora: "cogitô! cogitô".

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