São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 1996
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Madonna, notável, não consegue salvar filme

MARCELO FIGUEIRAS
DO "CLARÍN"

A primeira impressão é a seguinte: Evita tem tudo o que se esperava -ou o que se temia?- dela. A atuação de Madonna é notável. O filme tem uma música que faz jus à sua lenda.
Tem também uma visão da personagem principal que é digna das acrobacias dos Wallenda: no filme de Alan Parker, Eva Perón é uma mistura quimicamente instável de prostituta, santa, prostituta de novo, vítima, revolucionária... tudo isso junto e, ao mesmo tempo, exatamente o contrário.
Mais do que um retrato complexo, parece um retrato incompleto em que o pintor não conseguiu decidir se ama ou odeia a sua modelo.
Baseada, com uma fidelidade patente, no musical de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber, "Evita" é a primeira amostra de um subgênero que certamente não terá continuidade: o musical naturalista.
Devemos deixar claro que, por princípio, o gênero musical é um artifício: as pessoas não saem cantando quando se defrontam com as circunstâncias da vida.
Além disso, uma vida como a de Eva -essa parábola que passa da miséria e exclusão social a uma glória que vai além dos limites do humano -tem momentos dramáticos que deixariam qualquer ópera wagneriana com inveja. No entanto, Parker optou por uma aproximação quase documental.
Limitado por sua decisão -estética primeiro, e depois política- de filmar nos próprios cenários em que os fatos aconteceram, Parker quis montar um espelho da Argentina dos anos 40 e 50.
Esquinas reconhecíveis. Ônibus. Estações de trem. Revistas "Para Ti". Acabou sendo um espelho do musical. "Evita", o filme, é uma tradução quase literal do musical para o mundo das imagens.
Posto de outra forma, a Evita de Parker é o que a gente imagina quando escuta a música do original. Nem uma idéia a mais, nem uma a menos. Em consequência, essa Evita tem todas as virtudes e todos os defeitos do musical.
O filme começa com o anúncio da morte da protagonista. Em um cinema em Buenos Aires se projeta um filme sobre o romance entre uma dama espanhola e um pseudo-hússar.
A projeção é interrompida para ser feito o anúncio da morte da "chefe espiritual da Nação". A seguir há um "flashback" da morte do pai de Eva. Ela, ainda uma menina, foi excluída do velório por ser filha ilegítima.
Depois desse recurso toscamente freudiano, que define Eva como marginalizada e ressentida em relação às outras classes sociais, a história avança pela mão do Che (Antonio Banderas), que é um tipo de relator que aparece em todas as partes, proporciona informações e interpreta os fatos para facilitar a compreensão de quem não conheça bem a história argentina.
Uma Eva adolescente seduz Agustin Magaldi (o inexpressivo Jimme Nail). Eva consegue que Magaldi a leve para Buenos Aires. Quando Magaldi a abandona, ocorre uma das mudanças mais significativas do filme.
Eva canta "Outra Mala em Outro Corredor", que no musical era cantada pela amante adolescente de Juan Perón, quando Eva tirou seu lugar na cama dele.
Por que a mudança? Para fazer com que o espectador tenha simpatia por Eva que, no original, é cínica, manipuladora, egoísta -ao menos até o momento em que percebe a proximidade da morte.
Com "Outra Mala", Eva aparece como sendo fraca, sensível e sofredora. O truque é sutil: o espectador está a ponto de se emocionar. Mas só isso não é o suficiente.
Protagonista antipática
Mas é o bastante para colocar em evidência um dos perigos desse musical: o fato de estar baseado em uma personagem que é predominantemente antipática.
Ninguém diz que, via de regra, um filme deva ter um personagem simpático como protagonista, mas em geral é necessário para que o espectador se identifique com ele.
Não é o caso desta Eva. Para o letrista, Tim Rice, Eva Perón foi uma mulher que fez coisas boas pelas razões erradas -vingança, ambição, anseio de reconhecimento- e que só se humanizou quando estava à beira da morte.
Essa Eva manipuladora aparece bem definida desde o momento em que começa a usar os homens -e a ser usada também por eles, sem dúvida- para subir na escala social.
Finalmente, encontra Perón no ato em benefício das vítimas do terremoto de San Juan, onde os dois cantam uma música em que expõem o quanto um poderia ser conveniente para o outro.
Quando Eva chega ao quarto de Perón, acontece um dos gestos mais sensíveis do filme e que é a marca registrada Parker-Madonna: a câmera se afasta do quarto, até registrar a luz que se apaga.
Um gesto de delicadeza pouco comum para com dois personagens que, no resto do filme, são mostrados como oportunistas sem escrúpulos.
Perón passa a se exibir socialmente com Eva. Há facções do exército que se indignam com o seu relacionamento com uma atriz de segunda "cujo maior talento está no meio das suas pernas".
A classe alta também mostra seu ressentimento diante da "mulher vulgar e sem inspiração".
Sentindo que suas horas no poder estão no fim, Perón sonha em se aposentar, mas Eva o pressiona a seguir, desenvolvendo planos de dominação já não mais em termos de "você" e sim de "nós".
Quando Perón é preso, Eva se movimenta politicamente a seu favor e incita as massas, um papel que não teria assumido antes daquele 17 de outubro.
Dessa vez, no entanto, e graças aos seus esforços, Perón é libertado, há eleições, e o casal chega, gloriosamente, à Presidência.
Aclamada pelo povo na Plaza de Mayo, Eva canta "Don't Cry For Me, Argentina" (Não chore por mim, Argentina), e é nesse momento que ela pressente o papel que lhe destina a história.
Depois vem o casamento, a tarefa social, a construção de uma imagem maior que sua própria vida, bem no estilo das estrelas de Hollywood, e a visita à Europa.
Ao voltar à Argentina, institui a Fundação Eva Perón e se dedica à caridade enquanto os recursos da nação -sempre abundantes- começam a escassear.
Perón pressiona fisicamente a oposição para tentar reter o poder que lhe escapa das mãos. O filme mostra o atentado ao jornal "La Prensa" e a extinção -outra amostra da mente literal de Parker- da sua lamparina votiva.
Doença
É então que Eva sucumbe ao câncer. Nesse momento entra a única música nova do musical: "You Must Love Me" (Você tem que me amar), que segue a mesma linha, já mencionada, de mostrar Eva vulnerável e Perón carinhoso. Pela segunda vez, o truque não funciona.
Há uma cena final de Eva no leito de morte, que além de mostrar uma Madonna mais gorda do que nunca (já estava grávida!), é extremamente emocionante.
A luz do seu quarto se apaga -lá vai o Parker de novo... O povo chora. As pessoas, chorando, se abaixam para beijar essa Branca de Neve no seu caixão de cristal. Mas ela não acorda. Pelo menos fica claro que o Príncipe Encantado que ela escolheu não era o mais adequado.
Vamos fazer duas perguntas:
Quais das virtudes do musical aparecem nesta Evita de Parker?
A visão desmistificada da história.
E quais são os defeitos do musical que aparecem no filme?
O vai-e-vem da sua estrutura dramática. A maneira torpe de apresentar as informações e de tentar emendar os saltos entre os números musicais.
Algumas músicas que não resistiram ao passar do tempo, como por exemplo "Buenos Aires".
A falta de definição em relação aos seus personagens principais. Apesar dos esforços para justificar e fazer uma Eva mais agradável, o próprio Parker não perdoa os seus defeitos e, finalmente, não a toma nos braços. Ele a abandona. Eva fica sozinha, em um caixão de vidro.
Mais duas perguntas:
Quais são as virtudes que Parker acrescentou a Evita?
A transformação do personagem original de Che Guevara -que sempre foi um enxerto- em um tipo de Zé Povão.
E quais são os defeitos acrescentados por Parker?
A falta de imaginação. Nas suas mãos, Evita parece o remake de um filme de Fellini feito pela equipe de documentários da National Geographic. Prolixo. Competente. E previsível.
Quando pretende destacar as características fascistas do peronismo, Parker mostra cenas sucessivas de soldados em ação.
E quando quer mostrar o apoio do povo a Perón, Parker coloca um monte de extras na rua agitando cartazes. Por coisas assim, os críticos tornaram a vida impossível a Enrique Carreras.
Nesse sentido, Evita é um filme totalmente argentino. Além da sua embalagem de tangos, portenhismos e Casas Rosadas, é argentino pela sua pretensão e pela sua falta de coragem estética.
É difícil de se entender que Parker, que enfrentou a tarefa do projeto difícil, na hora da verdade não tenha tido nenhuma idéia.
É notável que Parker tenha se reservado o papel de diretor de cinema atribulado -com um bigodinho tipo Errol Flynn-, que acha deplorável a péssima atuação de Evita e que depois, quando ela é aplaudida pelo seu amante militar, bate palmas também.
A sensação que se tem é que, da mesma forma que esse diretor, Parker foi dominado pelas circunstâncias, pela vontade férrea de sua estrela feminina que queria tirar todos os demônios de Eva; pela vigilância de Lloyd Webber, o voluntarioso autor da música, e pelo cerco de parte da imprensa argentina. Com tudo isso, Parker parece não ter feito o melhor possível, e sim o que podia fazer.
Que na verdade não foi muito. Basta ver as cenas da Plaza de Mayo, onde os planos da sacada são sempre os mesmos, vão se repetindo o tempo todo.
É Evita um desrespeito a Eva?
Não. No máximo se recusa a deixar de lado características e fatos da sua vida que estão bem documentados e que, além do mais, não tiram nenhum mérito à sua obra.
No entanto, faz algo bem pior: não está à altura da personagem.
Essa mulher exuberante, apaixonada, tão única e luminosa como uma estrela cadente encontra em Evita uma semelhança opaca e pouco ousada.
Mais do que uma recriação da vida de Eva Perón, "Evita" parece ser um veículo feito sob medida para Madonna, que justifica com esse filme sua vida pretensamente escandalosa e sua tendência à autopromoção.
Quando, há três anos, Madonna declarou ao jornal "Clarín" que Eva Perón era um papel feito sob medida para ela, tinha razão.
Dificilmente conseguirá outro papel que se ajuste melhor aos seus talentos. Pena que essa mulher singular não tenha conseguido um diretor, também singular, para fazer o filme singular que Evita merecia.
Como aconteceu com os argentinos durante tantos anos, Alan Parker não soube o que fazer com esse cadáver maravilhoso.

Tradução Maria Carbajal

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