São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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A história teria sido outra...

ROBERTO CAMPOS

"Haec olim meminisse juvabit (valeria a pena algum dia recordar essas coisas)" Virgílio, Eneida, 1, 203
Há momentos na vida em que a gente sente o "susto da treva" -uma fatalidade que se avizinha com contornos obtusos e perigos secretos. Também na vida das nações há o "susto da treva". É quando são atacadas pelas "sugestões epidêmicas", de que falava Tolstoi: o inconsciente coletivo se torna violência ou burrice coletiva. Às vezes, podem-se até discernir, na bruma da história, as pegadas iniciais da "marcha da loucura", a que se referia Barbara Tuchman ao historiar exemplos de insensatez programada.
Recordo-me, na política brasileira, de pelo menos quatro momentos em que senti o "susto da treva". O primeiro foi quando, no governo Vargas, se proclamou o monopólio da Petrossauro (1953). Pressenti que várias gerações se intoxicariam com esse elixir do Apocalipse -a reserva de mercado. Rejeitaríamos investidores voluntários e nos tornaríamos mendigos de empréstimos. O segundo foi quando, no término do governo militar (1984), foi passada, por voto de liderança, a "Lei de Informática". Era nossa renúncia à corrida tecnológica, fraudando-se a geração nova no acesso ao conhecimento. O terceiro foi a cisão do PDS (1984-85), da qual resultou a formação do PFL, roubando-se a vitória presidencial a Paulo Maluf. Apesar de amigo pessoal de Tancredo Neves, sabia-o um acomodatício e não um reformador; em sua vida política jamais ousara afastar-se do paradigma de adulação do nacionalismo e dos monopólios estatais. Quase rompemos relações, quando, em audiência no Senado, endossou a cretina política de informática, contraditando Maluf, que a rejeitava.
Tancredo teria sido um excelente administrador de uma clínica de convalescença. Mas necessitávamos era de um treinador na ginástica do crescimento... Tragicamente, a restauração democrática coincidiu com uma onda de burrice econômica sem precedentes em nossa história, burrice partilhada irmãmente entre os membros da coalizão vitoriosa de 1985 -o PMDB e o PFL. O meu quarto "susto da treva" foi a Constituinte de 1988. Quando o Congresso se levantava em delirantes aplausos ao discurso com que Ulysses Guimarães batizava a "Constituição dos Miseráveis", permaneci sentado e melancólico, certo de que gastaríamos uma geração para corrigir-lhe os efeitos negativos.
Que teria acontecido se em 1985 fosse eleito Paulo Maluf, ao invés de Tancredo e Sarney? Nossa história teria sido muito diferente. E muito melhor. Para começo de conversa, não se teriam cometido os quatro pecados mortais que explicam a "década perdida" (1985-94): o Plano Cruzado (1986); a moratória unilateral (1987); a expansão do nacionalismo informático e dos monopólios estatais; e a Constituição de 1988. Maluf certamente não embarcaria no Plano Cruzado. Sabia, como empresário, que o congelamento de preços funciona ao contrário, aumentando a procura e reduzindo a oferta. Como exportador, não congelaria por nove meses a taxa cambial, num contexto inflacionário. Seu ministro da Fazenda teria sido Afonso Pastore, de visão econômica pró mercado e que, ao fim do governo Figueiredo, tinha negociado com o FMI e os bancos credores um acordo satisfatório de consolidação de dívidas, evitando a destruição do crédito brasileiro e a fuga de capitais. Opositor declarado do nacionalismo informático e dos monopólios estatais, Maluf ter-se-ia esforçado por aboli-los e certamente lutaria para que a Constituinte de 1988 não endossasse tais sandices. Aliás, provavelmente teria preferido um simples "Emendão" (solução que Tancredo Neves teria também preferido), ao invés de abrir a gaveta de utopias da "Constituinte Soberana".
Será justo rotular os anos de gafanhoto (1985-94) como a "década perdida"? A evidência estatística é acachapante. Na primeira fase militar, entre 1965 e 1973, a economia brasileira cresceu anualmente 9,8%, em termos reais; de 1973 a 1984, ainda no regime militar, a taxa caiu para 4,7%, em virtude de nosso incompetente ajuste ao choque do petróleo e subsequente crise da dívida. Mas o desastre só viria com o governo civil: o crescimento anual desabou para 2,1% entre 1985 e 1994.
E há uma agravante. Enquanto no decênio anterior parte da responsabilidade podia ser atribuída a fatores externos (choques de petróleo, recessão mundial, explosão de juros), o fracasso brasileiro na "década perdida" foi estritamente made in Brazil. É que o mundo já tinha entrado na terceira onda de prosperidade do pós-guerra (1984-90), quando os tigres asiáticos reproduziram o milagre de crescimento que o Brasil experimentara um vintênio antes. Durante nossa "década perdida", o Chile cresceu anualmente 5,1%, a Coréia do Sul, 7,8%, a Tailândia, 7,7%, e Taiwan, 6,6%.
As condições objetivas internacionais no início do governo civil não poderiam ser mais favoráveis: preços do petróleo e juros internacionais em queda, comércio internacional em expansão, excedentes de capital exportável no Japão e Alemanha, precisamente os países com mais simpatia natural pelo Brasil, hospedeiro de seus emigrantes. Mas a sinistra combinação de nacionalismo informático, moratória, hiperinflação, discriminação contra empresas estrangeiras, tirania dos dinossauros estatais do petróleo e telecomunicações botou tudo a perder. O Brasil saiu do radar dos investidores estrangeiros e somente agora começa a voltar.
O escandaloso declínio da performance brasileira, assim como a dramática ascensão dos asiáticos, são espelhados no quadro abaixo.
O aumento de renda cumulativa que teria sido gerado se o Brasil mantivesse taxas anuais de crescimento da ordem de 5% a 6% poderia ter-nos transformado num membro do G-7, com renda global muito superior à do Canadá.
A quem cabe a culpa desse desastre? Inicialmente, ao PFL, que, traindo a fidelidade partidária, cindiu o PDS, ensejando a captura de poder pelo PMDB. Na crônica do momento, parecia uma simples briga de poder de pedessistas nordestinos e mineiros contra o PDS paulista de Maluf. Poucos pressentiam que se tratava do "susto da treva". Certamente os dissidentes do PFL não eram movidos por amor à democracia, pois tinham apoiado na convenção partidária o candidato militar, coronel Andreazza, cujo entusiasmo pela democracia era comparável ao do libertino pelo voto de castidade. Passadas as coisas no filtro crítico da história, o cisma do PFL foi mais do que um erro. Foi um pecado contra o desenvolvimento. A vitória da coalizão obscurantista em 1985 trouxe ao proscênio líderes do PMDB -Ulysses Guimarães, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso- influenciados pelo nacional-populismo herdado de Vargas, com uma visão caipira do Estado do Bem Estar Social. Herdando o governo em situações pouco propícias, o vice-presidente Sarney, tolhido e contestado, sujeitou-se à tutela de Ulysses Guimarães, cujo colossal desprezo pela noção de limitações econômicas sempre me espantou. O "tudo pelo social" tornou-se um slogan ridículo. O correto seria: "tudo pelo econômico, para financiar o social".
Será a história um dia reescrita? Se o for, e quando o for, os heróis da Constituinte de 88 parecerão bandidos anti-sociais, fabricantes de pobreza e fraudadores do desenvolvimento. A única coisa que não se lhes pode negar é terem tido boas intenções. Mas, na história, as boas intenções são notas de rodapé; só os "resultados" entretecem a trama principal.
Dos próceres peemedebistas da Constituinte de 88, Ulysses foi logo castigado pela deserção dos eleitores. Mário Covas, que há dois anos hesita entre privatizar ou não o Banespa (e reluta em aceitar a extinção do peleguismo sindical no porto de Santos), foi eleitoralmente premiado. Teve o governo de São Paulo, no qual se comporta com exemplar mediocridade.
Mais culto e bem antenado para os ventos da globalização, FHC foi o grande premiado. Mas seu êxito está condicionado à sua capacidade de arrependimento das bobagens pretéritas. Parece hoje um reformista convicto. Mas sofre recaídas... Acovarda-se face à Petrossauro, que prometeu não privatizar e à qual outorgou ilegalmente, sem licitação, a concessão do gasoduto da Bolívia. E deixa a Telessauro entregue à bufoneria agressiva de Sérgio Motta, um exemplar irretocável de "incompetência treinada".
Dizia Oscar Wilde que nosso único dever para com a história é reescrevê-la. Estou fazendo a minha parte...

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