São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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A conquista do paraíso

Intérpretes impõem domínio criativo e seduzem o mercado

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REDAÇÃO

Num ano de franca retomada do mercado de massa de música brasileira, o país do Carnaval se vê invadido por explosivas vendagens de gêneros como o pagode rebolante do grupo É o Tchan (2 milhões de discos vendidos), o rock pré-púbere dos natimortos Mamonas Assassinas (2,3 milhões) e a gafieira jamaicana do Skank (1,5 milhão de "O Samba Poconé").
À medida que tais cifras possam significar efervescência artística, o Brasil se vê exuberante de tal variedade de arte enquanto assiste ao acomodamento de figurões da MPB e do pop local a posições intermediárias de faturamento -e de criatividade. Compositores já firmados se perpetuam em modelos repisados desde há 30 anos; novos compositores escasseiam ou, quando florescem -casos de Chico César, Arnaldo Antunes ou Carlinhos Brown-, se estabelecem recauchutando os mesmos velhos modelos de sempre.
É em tal cenário que o país se flagra imerso em pleno reinado das cantoras, que se apoderam legitimamente de nichos deixados à míngua pelo oceano de vulgaridade radiofônica e pelo marasmo criativo da comunidade musical e fazem a festa dionisíaca do fim de século por estas paragens.
Em muitas delas, a criação artística se desloca da confecção da canção à sua reformulação, à sua reinvenção. Enquanto preenchem à força da garganta lacunas criativas, inundam o país de vozes sem rivais em outro ponto do planeta.
Assim, descontada a posição hors-concours de Paulinho da Viola e seu novo disco, este ano de 1996 se vê dominado por dois pólos de representantes da nobreza do canto feminino. Marisa Monte (480 mil cópias vendidas de "Barulhinho Bom") apropria-se de estratégias de marketing e publicidade para associar a seu talento natural doses generosas de senso empresarial; Maria Bethânia (121 mil cópias de "Âmbar") finca pés no solo fértil da canção nacional e, discreta e silenciosa em qualquer espaço que não seja o palco, deixa a voz grave e trovejante incumbir-se a um tempo das tarefas artísticas e mercadológicas.
Refletem-se de forma invertida uma na outra; a veterana Bethânia procura se renovar adotando repertório de jovens compositores, a jovem Marisa funda-se no marketing de trazer de volta à baila a nobreza às vezes jogada a escanteio de figuras como Candeia, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Novos Baianos.
Numa posição intermediária entre esses dois pólos, Daniela Mercury estabelece-se líder de mercado entre as mulheres, com 500 mil exemplares comercializados de "Feijão com Arroz" e beneficiada pelo namoro de sua axé music com as modalidades mais populares(cas) da música popular e pela disposição sempre mais acentuada ao entretenimento que à arte.
As três puxam elenco de cantoras pertencentes a gerações as mais diversas que terminam 96 com discos de boa aceitação -casos de Nana Caymmi, Zizi Possi, Cássia Eller e a matriarca Ângela Maria- ou em fase de preparo de novos trabalhos -Gal Costa (200 mil exemplares médios por disco), Elza Soares, Rita Lee, Baby (ex-Consuelo) do Brasil, dona Ivone Lara.
A elas vem se somar sub-bloco mais específico: o das cantoras-compositoras, a disputar palmo a palmo com a hegemonia masculina a honra de fazer algo pela linha evolutiva da MPB.
Com escassas exceções -Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Maysa-, a composição no Brasil foi um ofício levado a cabo pelos homens até que a guerrilheira Rita Lee viesse cravar novos rumos.
Foi ela quem abriu alas para que passassem Baby Consuelo -a mais completa simbiose de rock e samba que este país produziu- nos 70, Angela RoRo, Marina Lima e Paula Toller nos 80, Fernanda Abreu e Zélia Duncan nos 90. E o mercado não faz restrições contra a aventura feminina de compor. "Registros à Meia-Voz", de Marina, chega às 70 mil cópias em menos de um mês; "Intimidade", de Zélia, a 90 mil, em igual período.
Mas há aquele contingente de nomes não disseminados pela mídia, seja por pouca afinidade com as normas de mercado -como Cida Moreyra (de voz tão imensa quanto a de Gal), Ná Ozzetti, Eliete Negreiros, Alzira Espíndola- ou porque acabam de despontar -Taciana (inclinada à prática moderna e pouco comum de se dedicar à música eletrônica), Daúde, Mônica Salmaso, Titane, Ana Flávia, Mona Gadêlha, Belô Velloso (sobrinha de Caetano e Bethânia e, portanto, continuadora do clã baiano), Maria Rita (filha e continuadora do clã de Elis)...
Se em geral não têm conseguido vôos de ousadia nestes anos 90 -no que, de resto, se equiparam aos homens de agora-, tantas vozes assim compõem um exército poderoso de que o Brasil dispõe para aliviar as dores da impessoalidade dos tempos que correm.
Pense nas idiossincrasias de voz e/ou personalidade de Carmen Miranda, Isaura Garcia, Marlene, Clementina, Nora Ney, Maysa, Celly Campello, Nara Leão (que no saldo do fim de século se insinua, moderna como sempre foi, candidata a figura-síntese da diversidade musical do 20º século), Wanderléa, Lilian, Clara Nunes (talvez a maior de todas as nossas cantoras), Rita Lee, Baby, Gretchen, Angela RoRo, Cida Moreyra. Um desavisado que em um próximo século tomar como paradigma tal paisagem jurará que o paraíso, no século 20, se localizava no Brasil.

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