São Paulo, quarta-feira, 25 de dezembro de 1996
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Bíblia tem influência nas decisões, diz Bill Clinton

NINA BURLEIGH
DA "GEORGE"

Todos os domingos em que o presidente dos EUA, Bill Clinton, está em Washington, o Serviço de Segurança envia equipes de agentes a três igrejas diferentes. Eles não sabem a qual delas Clinton irá, mas sabem que ele vai à igreja.
Como os presidentes Jimmy Carter e Harry Truman, Bill Clinton é batista, da Igreja Batista do Sul, que tem 16 milhões de membros norte-americanos e 40 mil igrejas espalhadas pelo país.
O presidente leva sua fé a sério: quando enfrentava problemas políticos em 1995 leu o Livro de Salmos inteiro.
Os redatores dos discursos do presidente descobriram que ele não apenas conhece trechos da Bíblia, como sabe identificar de que versão vêm.
Em entrevista concedida a bordo de seu avião Air Force One, durante uma recente viagem na campanha eleitoral, o presidente falou sobre como sua fé religiosa influi sobre sua atuação política e como reconcilia suas posturas em relação ao aborto e aos direitos dos homossexuais com a doutrina de outros membros de sua igreja.
*
Pergunta - Eu o acompanhei à Igreja Metodista Foundry United, em Washington, que, pelo que fui informada, o sr. frequenta com regularidade. Quando o sr. toma uma decisão política, costuma levar em conta o que o pastor da igreja ou seu pastor no Estado de Arkansas (sul dos EUA), Rex Horn, poderiam pensar acerca de sua decisão -sobre temas como a reforma da seguridade social ou o aborto, por exemplo? Em que medida sua fé afeta essas decisões?
Bill Clinton - De três maneiras. Em primeiro lugar, se tenho uma decisão realmente difícil a tomar e não estou certo de qual seja a coisa certa a fazer, eu faço uma oração, pedindo uma orientação, uma luz que vá além da minha capacidade de raciocínio sobre o assunto.
Em segundo lugar, eu aprendi, com o passar do tempo, que uma das consequências de se tentar viver em consonância com uma fé religiosa é que se tem consciência, e eu procuro não fazer nada em que não acredite -mesmo quando isso pareça ser a coisa certa a fazer naquele momento.
Se não, torna-se muito difícil defender essa opção mais tarde, implementá-la, levá-la adiante. E, em terceiro lugar, a fé às vezes tem ensinamentos bastante claros a nos oferecer em casos específicos.
Se tomarmos o exemplo da reforma previdenciária, há centenas de referências na Bíblia à nossa obrigação de cuidar dos pobres, de tratar os pobres com dignidade e respeito, de não ferir os pobres.
A dificuldade que enfrentei na decisão sobre a reforma previdenciária não era a principal dificuldade encontrada pela maioria das pessoas religiosas que se declararam contrárias a ela -e algumas delas me condenaram com veemência-; o fato é que ela acabou com a garantia do cheque mensal, que existia havia 60 anos.
(A reforma do sistema previdenciário dos EUA foi aprovada pelo Congresso norte-americano e sancionada por Clinton em agosto último. A reforma diminuiu os gastos do sistema em US$ 56 milhões, efetuou cortes sobre os programas alimentares, diminuiu a ajuda a imigrantes e aumentou o controle dos Estados sobre o sistema).
A dificuldade, para mim, era que (a lei proposta) era completamente injusta para com os imigrantes legais, inocentes, que trabalham duro e pagam seus impostos.
Mas achei que a lei oferecia uma oportunidade histórica de modificar toda a maneira pela qual nossa sociedade enxerga a pobreza e lida com ela. Foi por isso que a assinei.
Pergunta - A decisão foi influenciada por alguma coisa na Bíblia?
Clinton - Bem, não. Ou melhor, sim, à medida que, em última análise, eu acreditava que a lei acabaria sendo melhor para os pobres.
Essa lei diz, sim, vamos continuar tendo uma garantia nacional de atendimento médico e nutrição e vamos fazer mais pelo atendimento infantil do que jamais fizemos no passado, mas vamos repassar a porção federal dos custos da Previdência aos Estados.
E eles terão dois anos para calcular como transformar o cheque mensal da Previdência em um contracheque.
Achei isso uma coisa fundamentalmente importante a ser feita. Acredito que ela vá acabar com a era da responsabilidade dividida, na qual as pessoas nos níveis estadual, nacional e local ficam chutando a bola de um para outro.
Em lugar disso, ela nos levará a um sistema baseado na comunidade, em que todos têm de assumir responsabilidades por aqueles que estão fisicamente isolados do resto de nós e que vivem em condições de pobreza ou de dependência.
Mantê-los nessa situação não é um ato de compaixão.
A atitude compassiva é mudar as regras de tal maneira que todos que hoje têm o luxo de ficar sentados em casa condenando a Previdência tenham de assumir responsabilidades pela educação, formação profissional e colocação dessas pessoas em empregos.
Foi por isso que vetei os dois primeiros projetos de lei -porque acredito realmente não apenas que violariam minha fé, mas também que seria mau, em termos de política pública, poupar algum dinheiro às expensas do prejuízo das vidas de crianças (ele não sancionou os dois primeiros projetos de reforma por os considerar radicais).
Mas sei que muitos líderes religiosos acharam que eu violei as recomendações do Velho e do Novo Testamentos.
Pergunta - E eles lhe disseram isso, não é verdade?
Clinton - Sim, sim. E, de uma maneira estranha, muitos rabinos e pastores me condenaram mais do que condenaram os republicanos, porque acharam que eu, mais do que os republicanos, deveria ter a atitude que consideram correta, porque sou democrata e porque procuro tratar minha fé religiosa com seriedade. Mas eu discordo.
Pergunta - Como o sr. reconcilia as contradições entre suas próprias posturas em relação ao aborto e aos homossexuais nas Forças Armadas e os ensinamentos da Igreja Batista do Sul?
Clinton - Minha posição pessoal no tocante ao aborto é quase idêntica à posição que a Igreja Batista do Sul adotou em 1971, antes do processo Roe versus Wade.
Se você voltar atrás e ler os registros, verá que a Igreja Batista do Sul mudou sua posição. Mesmo a Igreja Católica só adotou uma postura totalmente contrária ao aborto no final do século 19.
Minha posição pessoal é que o aborto é inaceitável, exceto nos casos em que a vida ou a saúde da mãe correm risco em função da gravidez ou daqueles em que exista um problema sério que impediria a criança de ser uma pessoa capaz de viver normalmente, ou nos casos de incesto.
Com relação à posição legal, minha análise é basicamente a mesma que o (ex-)governador (do Estado de Nova York) Mario Cuomo explicou detalhadamente em seu discurso na Universidade Notre Dame, em 1984, embora sua postura -sua postura moral pessoal- fosse provavelmente mais rígida do que a minha, porque ele disse que aceitava os ensinamentos da Igreja Católica.
Cuomo disse que quando você governa em uma democracia, onde as pessoas têm fés religiosas diferentes, onde as pessoas têm divergências grandes, não em relação ao momento em que a vida tem início no sentido biológico -biologicamente falando, a vida tem início quando duas células se juntam-, mas a quando a vida que se desenvolve dentro do útero da mãe e efetivamente se torna uma pessoa, com direito a proteção independente, mesmo que contra a vontade da mãe.
É quase uma questão teológica: em que momento o espírito entra no corpo.
A Suprema Corte tratou dessa questão no caso Roe versus Wade.
Basicamente, ela disse: qualquer que seja a posição que adotemos, estaremos quase brincando de ser Deus, porque estamos tentando responder uma pergunta cuja resposta ninguém conhece.
Mas, numa sociedade que tem muitas visões diferentes sobre esse assunto, achamos que o critério deve ser o momento a partir do qual a criança pode viver independentemente, fora do útero da mãe.
Se a mãe permite que a criança cresça e seja nutrida até esse ponto, então ela (a criança) passa a ter direito à proteção independente.
Foi por isso que eu sempre declarei que iria assinar uma lei que proibisse o aborto no terceiro trimestre de gravidez, a não ser que a vida ou a saúde da mãe corressem perigo -e realmente assinei uma lei desse teor em casa (no Arkansas, onde Clinton foi governador).
Os líderes religiosos dizem que qualquer exceção por motivo de saúde pode ser derrubada com argumentos. Isso pode ser verdade e pode não ser.
Acho que é possível estabelecer exceções por motivo de saúde em termos mais específicos do que foram estabelecidas no passado.
Assim, se você governa numa democracia, onde as pessoas têm visões divergentes e onde uma enorme porcentagem da população não concorda com você, precisa tomar muito cuidado quando se trata de aplicar a lei criminal contra uma mãe e um médico.
É possível argumentar que, embora as tribos judaicas adotassem práticas antiabortivas rígidas até mesmo antes de Cristo, a Bíblia não adota uma postura específica a esse respeito. E, nos EUA, temos muitas pessoas que não são cristãs.
Além disso, não existem evidências científicas comprovadas, fora aquilo que sabemos em termos biológicos, sobre a partir de que ponto o bebê é capaz de viver independentemente da mãe.
Pergunta - E quanto à questão do homossexualismo?
Clinton - A Bíblia realmente condena a conduta homossexual, especialmente no Velho Testamento. Mas, no Novo Testamento, Cristo traça uma grande distinção entre o pecado e o pecador.
Cristo condenou o divórcio com muito mais contundência do que condenou o homossexualismo.
Há condenações explícitas do divórcio e referências ao segundo casamento enquanto adultério, muito menos ambíguas do que as sobre aborto e homossexualismo.
Mas não negamos aos divorciados o direito de ter emprego ou de trabalhar no funcionalismo.
Para mim, portanto, quer acreditemos ou não que o homossexualismo é uma condição biológica ou que os homossexuais devam ser celibatários -é o que alguns cristãos acreditam-, a Bíblia afirma inequivocamente que, se uma pessoa é boa cidadã, se obedece à lei, se comparece ao trabalho todos os dias, se age adequadamente, ela não deve ser sujeita a qualquer discriminação injusta apenas pelo fato de ter cometido pecados.
Assim, acredito -com todo o respeito devido- que estou certo e que eles estão errados.

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