São Paulo, quarta-feira, 25 de dezembro de 1996
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Os excluídos do Natal

ROSELI FISCHMANN

Andando pelas ruas de São Paulo, vejo-me esmagada pela simbologia do Natal. Na televisão, dizem que tudo está bem e todos são bons, leais, generosos. O tom emocionado dos artistas indica que algo deve ter mudado e eu não percebi. Nos anúncios, ofertas, ótimos preços, cheque pré-datado etc.
Na revista, a capa chama "Idéias para o Natal", enquanto o anunciante banqueiro aplica o antídoto: "Olha o que querem fazer com seu 13º!". Na loja, sou obrigada a ouvir as risadas ocas e graves do Bom Velhinho, o caixa e a vendedora com barrete vermelho -e, lamentavelmente, não são saci-pererê.
Nosso país é tropical, mas dizem que a menção à neve traz sonho e fantasia. Nossos shoppings decorados com presépios, aqui e ali um anjo garante a integração "new age". Somos figurantes de uma peça cujo argumento central pouco ou nada tem a ver com o "religare", embora se abuse dos arquétipos que vão do Inocente ao Ermitão Idoso, passando pelo mito do eterno retorno.
Mais forte que o espírito de fé é o comércio, a obrigatoriedade de presentear a todos. A miséria, as ceias de rua, tudo para arrefecer o contraste e a culpa. Afora os pais que se esfacelam em dívidas para dar a seus filhos o presente dos sonhos. Por amor, dizem.
Se bem-aventurados os pobres, mal-aventurados aqueles que ousam não se comover com um clima que talvez não lhes diga respeito, ou ao contrário, estão suscetíveis ao extremo.
Minorias religiosas, cujas tradições têm outros valores, outros símbolos, outros calendários. Minorias que, muitas vezes, recebem um "feliz Natal" e já não ousam explicar que seria outra a data em que gostariam de ser cumprimentadas. Simplificam com um polido e diplomático "para você e sua família também".
Ateus, possibilidade que se constitui dentro do direito universal da liberdade de consciência e de crença, o que inclui, é claro, a liberdade de não ter fé religiosa. Comumente mais humanistas que muitos que se dizem de orientação religiosa, pacientes até com aqueles que rezam por sua conversão, ateus também recebem e retribuem, generosamente, votos natalinos.
Pessoas que, exatamente neste dia, estejam sofrendo momento traumático em suas vidas, a morte de alguém querido, um vínculo acabado, uma ausência irreparável, são outros desses excluídos do Natal.
Mais correto, talvez, seria dizer que todas essas vítimas são prisioneiros em espaço aberto, onde as grades são mensagens opressivas, vindas de muitos e diversificados emissores, por fartos e eficientes canais, para aqueles que não pretendem consumi-las ou senti-las -e que não têm como evitá-las.
As viagens compulsórias, as ceias, perus e panetones, as síndromes de depressão, o aumento dos suicídios, as brigas e os embriagados nos lares que têm que instalar um clima feliz -momentâneo, frio e artificial como a árvore adquirida na loja de departamentos. Ou sem vida, como os pinheiros que se compram "plantados" em latas, de onde as raízes, se existiram, foram cortadas para o consumo da data. Sem esquecer, é claro, que sabemos, com certeza, que a família do vizinho é sempre mais "natal" que a nossa -e não é uma questão de fé.
Para aqueles que suponham que nessas constatações residam amargura, talvez valha a pena lembrar que, em geral, as mais doces e sublimes mensagens são, rapidamente, substituídas pela sensualidade do Carnaval.
Como o destino é "tudo se acabar na quarta-feira", a vida recomeça, e novamente é consentida a dor, a desarmonia, mas não a diferença, esmagada a cada vez que a sociedade nos deixa sozinhos, sem reconhecer nosso júbilo ou recolhimento, enquanto a rotina e o expediente correm normais. Ou toda vez que somos obrigados, involuntária e passivamente, a reverenciar um dia que não nos diz respeito. Em nenhum momento, porém, essa exclusão é tão sutilmente truculenta como no Natal.
Com todo respeito pelos sentimentos e princípios religiosos daqueles para quem o Natal é importante, talvez a sociedade deva se perguntar, atenta e honestamente, por aqueles que não estão interessados em tudo isso, ou para quem esse é um dia insuportavelmente inesquecível. Seria muito mais compassivo, solidário e fraterno, como esse espaço que aqui se abre, que todas as mensagens de Natal que vão por aí.

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