São Paulo, quinta-feira, 1 de fevereiro de 1996
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Microcrise, macroavanços

CANDIDO MENDES

Nenhuma previsão política poderia vaticinar para o governo um fim de ano de tamanho anticlímax como o de 1995. Não estamos diante da crise proverbial, de um começo de desgaste de todo situacionismo, mas de um incômodo solerte, resultante do desajuste da máquina e das instituições à ação vigorosa do Executivo. O que se testa é o nível de efetiva modernização política do país.
A dita crise foge ao mero choque dos atores e põe em causa o palco em que se movem e os suportes legais para o desempenho mais franco e exigente da democracia. Tem razão o presidente em não enxergar antagonismos ostensivos e desqualificá-los como cisco nos olhos do Planalto.
E o mal-estar não nasce também do nosso catastrofismo latente, que logo revida à quebra de êxitos sucessivos do Executivo, ao fio desses meses. Nosso inconsciente coletivo pune com decepção violenta qualquer interrupção da escrita de sucessos de um time de futebol ou de uma equipe de governo. E tanto mais quando não registramos recentemente período tão bonançoso quanto o deste início de mandato, em flagrante contraste com os desacertos das últimas semanas.
Não são também os sinais de uma primeira usura das expectativas pedidas ao Palácio, a que ora roeria a performance de FHC, que chegou, por enquanto, a imobilizar qualquer bloco de oposição no Legislativo. Por isso mesmo o remédio do anticlímax não será o clássico elixir das mudanças ministeriais, saciando as novas gulas de poder das coligações governistas e rejuvenescendo o alvo de críticas e apoios à situação.
O que a virada de ano sugere é a detecção pelo presidente de uma fonte de percalços profundos, a que não serve de refrigério o reencontro entre o PFL e o Planalto ou a retomada após os conciliábulos noturnos do vice-presidente, das polidezes e afagos entre os sócios palacianos ostensivos. O sobressalto vem de uma ameaça difusa, e pede a remoção de todo bastidor do espetáculo, aferrado à luta parlamentar.
Concerne às próprias engrenagens em que o presidente-sociólogo entende o poder, no eixo e na latitude de um processo de modernização política. Tem ainda toda razão por ver, entre os sorrisos controlados, não mais que uma minicrise. Isso se se aplicar à remoção dos impasses ainda encobertos ao livre trânsito de sua plataforma e dependentes de avanços do nosso quadro institucional.
As revelações do Sivam, os segredos da pasta rosa, as decisões do Judiciário ameaçadoras do Plano Real sugerem alçapões mais sutis, a poder engolir os sucessos desses meses de graça e fortuna, se se pretende avançar do combate à inflação a um projeto efetivamente reformista.
Todos esses incidentes mostram o passo adiante que se impõe ao governo, no plano amplo do regime se, de fato, ler os sinais do mal-estar, escapado dos embates triviais e das soluções clássicas de administração de uma crise ou pseudo-crise política.
Há que desnudar-se a boca da cena, expondo à contenda todos os seus atores ocultos, bem como as conexões ocultas de seus atores explícitos. É o que assegurará esse novo cenário adulto da democracia, que quer trazer à luz a ação de todos os lobbies, bem como explicitar o laço de dependência econômica de todos os parlamentares que têm no patrocínio de suas eleições a primeira e indisfarçável matriz.
O dito escândalo do Sivam mostra que, se já tivéssemos uma lei de lobby -exigência fundamental de um regime maduro-, as dúvidas, os mal-estares e as interrogações venenosas da Comissão Especial de Inquérito perderiam pelo menos a "zona gris" de manipulação de tais interrogatórios.
No bom procedente americano tal norma deve ser exaustivamente detalhista e não abrir sombra de dúvida entre o que é legítima pressão democrática na obtenção de contratos públicos e o que mostra, claramente, o abuso de poder na concessão de tais favores.
Tal como preceitua a lei nos EUA -e por isso mesmo é constantemente atualizada-, pode-se oferecer uma dúzia de rosas, mas não 13 botões à mulher de um congressista. Da mesma forma, dar ao deputado uma garrafa de champanhe, mas não uma caixa da bebida. Tal como o lobista sério pode pagar conta de viagem de parlamentar para seminário sobre temas em foco na agenda legislativa, mas nunca estendê-la à vilegiatura de fim-de-semana.
Diante desse pente finíssimo se avaliaria o quanto o comandante Assumpção assume, ou não, o perfil que reivindica, convictamente, de lobista, ou o quanto ministros e embaixadores devem fruir de sua casa ou das mordomias, dos jatinhos, nos convescotes além fronteira. Por outro lado os nomes da pasta rosa põem à luz a necessidade de amplo conhecimento público dos dinheiros de campanha dos parlamentares -por mais ilustres e insuspeitos que sejam.
Não importa o caráter pretérito das revelações nem a sua não-incidência, à época, em preceitos legais. O que a modernização política reclama é a clara declaração desses vínculos e das relações de dependência que necessariamente se inferem de representação mais consistente que a das débeis legendas parlamentares. Não há que condenar esses laços, nem o faria a lei -nascida da verdade mais funda de saber-se "quem é quem" no Congresso Nacional.
O que se impõe -a bem do avanço da democracia e como hoje cogita o deputado Milton Temer- é vedar a tais nomes funções de presidente ou relator em Comissões do Congresso, quando tiverem por objeto matéria ligada diretamente àqueles interesses, provedores do sucesso eleitoral de seus candidatos.
A não ceder na ambição de seu projeto, FHC deparará também o trânsito intrincadíssimo entre a autonomia do Judiciário e a necessidade de encontrarem as iniciativas do governo um ponto de vista, de parte de nossos tribunais superiores, capaz de dar consistência à moldura legal em que agirá o Planalto.
A liminar da juíza Selene em Brasília, suspendendo o Proer, só torna mais urgente a medida de vinculação das súmulas dos Judiciários de cúpula às instâncias inferiores, como hoje propõem ministros do Supremo Tribunal Federal.
O que hoje pode legitimamente suscitar o Executivo, no moderno Estado democrático, é a certeza dessa jurisprudência, para dar curso ou desanimar de vez um dado propósito de mudança. E tal mesmo a prescindir dos clássicos climas de sintonia entre os poderes, já que é praxe dos tribunais não obstaculizar frontalmente, e de saída, o núcleo da plataforma nova de um Executivo.
Fica na nossa memória a desenvoltura com que transitou frente aos tribunais o confisco decretado pelo governo Collor. Por força, agora, entram na mesma arguição de direitos adquiridos questões fundamentais da aposentadoria ou do estatuto do servidor público. E a decisão do Superior Tribunal do Trabalho sobre a reposição integral da inflação no salário dos funcionários do Banco do Brasil abre novo flanco à conciliação fundamental entre o Estado de desenvolvimento e o Estado democrático de Direito.
O engenho do Executivo dispõe de remédios cautelares, que permitem caucionar, de vez, o caminho a seguir. Devastadora será a guerra de cem anos, no pântano das decisões intermédias, a exorbitarem o decurso do mandato e inviabilizar a plataforma de tanta gala e tanto brio de seus meses de partida.
Pode FHC desqualificar a crise ostensiva de dezembro. Mas o que não é miopia do político só exige mais do cientista social, de mirada larga para perscrutar os desafios do sistema, de que depende a continuação da Presidência afortunada.

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