São Paulo, quinta-feira, 1 de fevereiro de 1996
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Sem medo de ser neoliberal

OTAVIO FRIAS FILHO

Os jornais estão cheios de reclamações, muito justas, contra o individualismo exacerbado da nossa época. Se a livre competição, levada a seus extremos, já faz estrago social em países com um mínimo de equidade em termos de saúde e educação, imagine o que ela pode produzir nos países pobres, onde a desigualdade começa no nascimento e se torna um abismo nos anos de formação.
Mas atribuir essa mentalidade hedonista, que busca um máximo de satisfação material e particular, ao neoliberalismo, como se fosse uma moda passageira, é provavelmente um engano. O neoliberalismo ganhou voga há pouco mais de dez anos, mas aquela mentalidade vem sendo alimentada desde muitas décadas, sem que fosse possível discernir, então, as consequências hoje flagrantes.
Colhemos o que plantamos. Os anos 60, por exemplo, estabeleceram uma idéia vasta e generosa de afirmação pessoal. Todos temos o direito de expressar a nossa autenticidade, de aparentarmos o que somos; a humanidade se desuniformizou, os exércitos e conventos se esvaziaram, as formas de disciplina coletiva ruíram, cada um deveria seguir seu caminho por sua conta.
Esse movimento, de sentido transgressivo e iconoclasta, teve uma consequência prática completamente imprevisível: derrubou as barreiras que ainda havia entre o indivíduo e o mercado. Cada pessoa logo se tornou um átomo livre. Os desejos mais extravagantes, as necessidades menos necessárias, as exigências do eu -todas inadiáveis- vieram à tona reclamar seus direitos.
A própria idéia de felicidade pessoal, no sentido em que a concebemos hoje, é recente: data talvez do pós-guerra. O objetivo de nossos avós não era o de "ser feliz", mas o de constituir família, servir a pátria, ser uma boa mãe, um próspero comerciante, um sacerdote consciencioso. Estavam tão imersos nessas disciplinas que o conceito de "felicidade" nem lhes passava pela cabeça.
Acima do nível de uma subsistência básica, frugal, as nossas necessidades não podem mais ser atendidas a partir "de fora"; dependem de uma coesão interna, subjetiva, que à sua maneira a antiga ideologia patriótico-moralista assegurava. Por isso nossa subjetividade de repente se exibe escandalosamente em público, como se buscasse "fora", em desespero, aquilo que já não existe "dentro".
Somos, então, consumidores compulsivos (inclusive de afeto), narcisistas incorrigíveis, solitários aparentemente muito bem integrados. Nossas aquisições nos tornam mais vazios, todas as satisfações que obtemos são substitutivas e escorrem, portanto, entre os dedos. Não encontramos resposta nem no shopping center, nem no psicanalista, nem na academia de ginástica, onde aliás procuramos, em vão, a mesma coisa.

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