São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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Ferrovias fora dos trilhos

JORGE M. KORNBLUH

São Paulo corre o risco de continuar a ser onerado como território de passagem
Um velho aforisma cínico da vida política brasileira afirmava que as versões são mais interessantes do que os fatos.
É o que nos sugere o recente artigo de Luís Nassif na Folha de 14 de janeiro. Seu título, "A última obra de Eliezer", talvez merecesse o subtítulo "A primeira vitória da Vale nos Mares do Sul".
De fato, longe de desmerecer o valor do dr. Eliezer Batista para a vida nacional e, particularmente, sua importância na construção de uma das mais eficazes empresas do mundo, sobretudo em sua atividade ferroviária, não se pode desvincular da questão abordada os interesses empresariais da Cia. Vale do Rio Doce no desenho de seu futuro.
É pública e notória, ademais de ser perfeitamente legítima, a preocupação que a Cia. Vale do Rio Doce passou a ter após iniciar suas operações em Carajás. A partir de então, lenta, mas seguramente, seu mercado de minérios de exportação -mercê da latitude de seu porto de escoamento, que reduziu os fretes marítimos- passou a esvaziar a atividade mineradora-exportadora via porto de Tubarão na costa capixaba. E, em consequência, poderá tornar ociosa uma ferrovia de altíssima capacidade e eficiência que é a Estrada de Ferro Vitória a Minas.
A estratégia da Vale não poderia, então, ser outra: converter tão extraordinário potencial ferroviário e portuário num canal de escoamento de outras mercadorias, particularmente a produção agrícola do Centro-Oeste, promissora fonte de alimentos para todo o mundo.
E assim vem fazendo: promovendo uma vitoriosa articulação com as linhas da Rede Ferroviária Federal que adentram a Hinterlândia; construindo terminais especializados em grãos no Porto de Tubarão; mobilizando armadores de supernavios para as novas commodities. E isto tudo seria perfeito não fosse -como em todo empreendimento humano- a existência de ameaças.
A primeira preocupação evidente foi com as distâncias: os portos ao sul, nos litorais fluminense, paulista e paranaense, estariam quase 700 km mais próximos do Oeste produtor. Além disso, a crescente realidade do Mercosul aproxima esses mesmos portos dos novos mercados de transporte, principalmente Argentina e Uruguai, eventualmente Chile nas rotas marítima ou terrestre.
Mas, também, o sucesso explosivo do transporte por "containers", factíveis de transporte multimodal econômico de mercadorias de alto valor agregado e em navios de menor calado. Tudo isso converge para dar, sobretudo aos portos de Sepetiba, Santos e Paranaguá, uma importância estratégica até então secundária. E, aqui, passa a ter importância o controle da malha ferroviária paulista.
A incorporação da Fepasa à Rede Ferroviária Federal não é nenhuma novidade. Já na constituição da empresa paulista, nos idos de 1971, o então presidente, o saudoso gen. Jaul Pires de Castro, contemplava entusiasticamente uma consolidação da malha ferroviária paulista.
E até propunha uma solução empresarial: a Rede participaria acionariamente da Fepasa, inicialmente integralizando o capital através dos ativos das então E. F. Santos a Jundiaí (atual Superintendência Regional 4), da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (atual SR 10) e, eventualmente, do trecho paulista da Rio-São Paulo (hoje fazendo parte da Superintendência Regional 3 - Juiz de Fora).
Ao longo do tempo, as melhorias e modernizações da malha ferroviária assim unificada seriam objeto de aportes de capital dos governos federal e estadual, cabendo ao primeiro, se assim entendesse -em função do interesse nacional-, investir mais de modo a adquirir o controle acionário da empresa.
O assunto não prosperou, mas foi retomado timidamente no governo Geisel, quando o Ministério dos Transportes promoveu um grupo misto de estudos que logo se desfez sem ter apresentado alguma sugestão. E a questão da integração ferroviária em São Paulo continuou sem solução com o resultado de sacrificar a participação da modalidade ferroviária, principalmente no acesso ao Porto de Santos, atingindo hoje o percentual ridículo de 5% de participação no transporte de cargas.
A linha da Rede Ferroviária Federal, comandada do Rio de Janeiro e operacionalmente subordinada a Juiz de Fora, não mostrou maior dinamismo na solução, limitando-se a manter o clássico gargalo entre a malha da Fepasa e o Porto, que é seu trecho de 20 km entre Cubatão e a faixa portuária.
A dissonância se aprofundou agora, quando -movido pelo objetivo de privatização- o governo federal não contemplou em seus estudos a malha da Fepasa, restringindo a privatização no Estado de São Paulo àquilo que é propriedade da Rede Ferroviária Federal apenas, como se as linhas respectivas fossem alimentadas de modo autônomo pelo mercado de transportes.
Passou-se a cogitar de privatização de uma propriedade em vez de um serviço, forçosamente regional, abrangendo as duas empresas. Este modelo desastrado teve um desenho ainda pior: agregou a ligação Planalto-Baixada Santista à malha Sudeste, centrada e com interesses em Minas Gerais. Quem, por consequência, assumir a privatização dessa malha passará a controlar o futuro de toda a malha da Fepasa.
E os contornos não param por aí: passa a ser dirigida, segundo o critério do novo proprietário-controlador (que poderá ser a Vale!), a política de encaminhamento dos fluxos provenientes da FerroNorte, do Centro-Oeste, do Oeste etc.
A recente adesão da Vale ao consórcio que se candidata ao arrendamento da malha Sudeste e a extraordinária capacidade operacional da mesma em matéria ferroviária seguramente farão com que a política estrutural do transporte de cargas na região passe a seguir os passos que ela determinar.
Cabe perguntar: foi um bem a transferência da Fepasa para a esfera federal? Honestamente, só o futuro poderá dizer; a curto prazo o benefício é evidente. Mas cabe cogitar: não seria mais legítima e de acordo com os interesses regionais uma inversão, o Estado assumindo as poucas linhas que a Rede aqui tem?
Afinal, a mais importante dessas linhas, a antiga E. F. Santos a Jundiaí, parece legitimamente um patrimônio do Estado, uma vez que foi a produção de café, algodão etc. do povo paulista, ao longo de décadas de concessão, que pagou tudo que essa estrada é, tirando-a da sua quase falência inicial. E esgotado o período da concessão inglesa ela caiu gratuitamente no patrimônio da União.
E mais: será que uma integração maior, envolvendo as linhas da Fepasa e da RFFSA numa maior extensão, abrangendo toda uma região, envolvendo os Estados do Sul, do Oeste e do Sudeste, sob uma única empresa (a exemplo das redes ferroviárias norte-americanas, eficientíssimas, com uma única administração para 20 ou 30.000 km), não consultaria melhor os interesses nacionais? Os custos seriam, sem dúvida, menores e seria maior a presença da ferrovia no mercado terrestre de transportes do país.
Essas considerações, embora todas potencialmente discutíveis, servem para mostrar que um assunto de tal relevância e profundidade não pode fica limitado a um artigo de jornal, por mais bem-intencionado que seja. Merece um amplo debate.
Sob risco de o Estado de São Paulo continuar a ser onerado em sua missão de território de passagem, como ocorre com a malha rodoviária, sustentada pelo Erário paulista, mas atendendo a circulação eficiente de cargas originadas em outros Estados e destinadas a portos fora de seu território, sem a competente geração local de riquezas.

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