São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Claro e moderno

PAULO SÉRGIO DUARTE

Não é novidade lermos e ouvirmos restrições ao discurso da crítica de arte no Brasil. Entre essas existem as eternas lamentações contra o hermetismo dos textos, a conhecida demanda pela empatia imediata, a negação de qualquer esforço de reflexão. A exigência da especialização e a complexidade dos problemas tratados criam as condições para que existam reais dificuldades do público leigo de compreender, não apenas os textos, mas boa parte da produção de arte contemporânea. Lembremos, apenas, que essa reação que se apresenta com mais frequência na arte, não é diferente em relação à música: agora, no final do século, o limitado público da música erudita no Brasil, na sua maior parte, chega a compreender, com certo esforço, Mahler. A crítica de arte, hoje, se manifesta na atividade docente nas universidades, nas edições de catálogos e livros, no trabalho de curadoria de exposições, muito mais que na imprensa cotidiana. Portanto, raramente se dirige ao chamado grande público.
De outro lado, este ambiente fechado, no qual circula boa parte dos textos sobre arte, suscita, com frequência, um palavrório insípido, um jargão forjado recentemente que sequestra seus termos de um certo deslumbramento diante da fenomenologia, e o leitor, mesmo leigo, percebe a inadequação entre o texto crítico e o objeto de sua análise: a própria obra de arte, expulsa do mundo e deslocada para uma espécie de limbo eidético.
A obra de Mário Pedrosa (1900-81), o maior de todos os nossos críticos de arte, foi construída, em boa parte, pelos artigos publicados em grandes jornais diários. Na primeira leitura, sente-se logo o imperativo da máxima: para problemas complexos, idéias claras. É com esses textos que o leitor entrará em contato, pelo projeto da Edusp de edição de suas obras escolhidas, em quatro volumes, organizado pela profa. Otília Arantes.
Otília se debruça sobre o conjunto da obra de Mário Pedrosa há muitos anos e já, no início da década de 80, tinha pronto um projeto de edição das obras completas que alcança os 14 volumes; portanto, dificilmente poder-se-ia encontrar um profissional mais habilitado para cumprir o empreendimento assumido pela Edusp. Alie-se a este conhecimento específico, sua formação em filosofia, sua longa experiência como docente de estética nas Faculdades de Filosofia e de Arquitetura e Urbanismo da USP, o fato de ser uma das raras estudiosas, entre nós, do fenômeno identificado como pós-modernismo, para termos a garantia de estarmos diante de um trabalho editorial de alta qualidade.
Os quatro volumes das obras escolhidas estão divididos por temas. O primeiro, recém-lançado, se intitula "Política das Artes"; estão previstas as seguintes reuniões de textos para os outros volumes: 2 - "Acadêmicos e Modernos", 3 - "Forma e Percepção Estética" e 4 - "Modernidade Cá e Lá".
O "Política das Artes/Textos Escolhidos 1", dividido em quatro partes nos põe em contato com problemas historicamente datados como com outros que continuam com a mesma vigência de 30, 40, 50 anos atrás. Os textos revelam logo o caráter combativo do militante comunista Mário Pedrosa, um dos fundadores da Quarta Internacional. Contra a corrente hegemônica entre os comunistas brasileiros, que cobrava dos artistas uma produção "engajada", nosso crítico repetidas vezes retornava à defesa intransigente da autonomia da arte e à condenação da estética totalitária, difundida pelo stalinismo, que aqui chegava diluída na propaganda pelos temas "sociais". Sua luta não tinha a pieguice nem a hipocrisia de um liberal. A liberdade da criação artística era defendida como condição necessária e indispensável para que pudesse se constituir e fluir uma das formas do conhecimento humano. Paradoxo típico de um comunista que acreditava na capacidade de emancipação da arte e da cultura: defendia a liberdade, sem a má-fé de considerá-la apenas um meio para chegar ao socialismo (como faziam os stalinistas) -e, ao mesmo tempo, militava numa organização que lutava pela ditadura do proletariado.
Na verdade, este primeiro volume constitui uma espécie de moldura dessa dimensão maior do cidadão e crítico Mário Pedrosa, de seu desenvolvimento e de sua dinâmica. Otília dividiu os textos por temas (1 - "Da Arte Proletária à Arte Independente", 2 - "O Crítico, os Salões e as Bienais", 3 - "Museus de Arte no Brasil" e 4 - "O Ponto de Vista Latino-americano") e no seu prefácio nos apresenta o percurso do pensamento de Mário. Este se estende da famosa e pouco conhecida conferência sobre Kãthe Kollwitz, quando ainda defendia uma arte alinhada com os interesses do proletariado na luta de classes, às décadas de verdadeira luta ideológica pela modernidade num país provinciano de capitalismo periférico, até a visão cética quanto a qualquer papel que a arte pudesse vir a desempenhar na melhoria das condições de vida da humanidade, depositando suas esperanças, no final da vida, numa arte que viesse a surgir nas condições adversas do Terceiro Mundo e no potencial estético da cultura indígena.
A resistência das elites brasileiras em estabelecer instituições culturais estáveis e dinâmicas é amplamente examinada por Mário e muitas das suas críticas permanecem de incrível atualidade. Mário, um homem do mundo no melhor sentido do termo, sentia e apontava o descompasso dessas elites e seu descompromisso com a própria história, como se aqui a burguesia houvesse perdido o papel que havia desempenhado nas formações dos estados modernos na Europa e na América, para se alinhar numa dimensão amesquinhada de simples exploradores de força de trabalho.
A obra de Mário Pedrosa adquire importância maior como ensinamento do caráter que pode e deve assumir a crítica de arte num país que termina o século sem sequer ter resolvido problemas básicos como o da educação e da saúde de seu povo. A micropolítica das artes vê-se, nessa obra, articulada a um projeto de emancipação social, que custou a Mário prisão e exílio. Rever esse trabalho no momento de consenso e triunfo neoliberal nos realimenta e nos lembra a "boutade" de Brecht: "Exatamente porque as coisas estão como estão é que não continuarão como estão".

PAULO SERGIO DUARTE é crítico de arte

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