São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Adeus ao urso com legenda

REGINA MACHADO

O Arteiro e o Tempo
Glauco Rodrigues e Luis Fernando Veríssimo
Berlendis e Vertecchia Editores, 52 págs.
$ 25,00

Goeldi
Alberto Martins e Luise Weiss
Edições Paulinas/ MAC-USP, 30 págs.
R$ 27,00

Uma questão importante no universo do ensino da arte para crianças diz respeito à relação texto verbal/imagem visual e suas possibilidades de formulação em propostas pedagógicas.
Durante muito tempo, as escolas tradicionais desconheceram, em geral, a idéia de que uma conversa criadora entre texto poético e obra visual pode contribuir para a aprendizagem em vários níveis de complexidade. Todos nos lembramos do ursinho sorridente estampado na página, sob o qual estava escrito: URSO. Ou então, do professor de história que pedia para que os alunos desenhassem uma caravela ilustrando o tema do descobrimento do Brasil. Nesses e em muitos outros exemplos, ora o texto descrevia a imagem, ora a imagem descrevia o texto. Em todo caso, as crianças deveriam apenas constatar o óbvio, reproduzindo aborrecidamente o que já sabiam. Na maioria das vezes, o destino da forma artística era perder sua especificidade e função, atrelada mecanicamente a conteúdos de outras disciplinas do currículo. Tanto a imagem visual como o texto poético utilizados na escola, passaram anos privados de suas múltiplas significações, restritos a um caráter meramente descritivo e didático, a serviço de princípios pedagógicos que ignoravam a função da imaginação na experiência de aprender.
Ainda bem que a reflexão e a produção artística avançam, como sempre, em meio aos equívocos oficiais. Dois projetos editoriais de livros de arte para crianças propuseram-se o desafio de tratar a relação texto poético/forma visual, procurando estabelecer uma "conversa imaginativa" entre artistas da palavra e artistas da imagem plástica. A Editora Berlendis & Vertecchia lançou em 1980 o "Projeto Arte para Criança" e as Edições Paulinas, associadas ao Museu de Arte Contemporânea da USP, criaram este ano a Coleção Olharte. São duas propostas distintas, mas ambas trazem uma contribuição pertinente para a renovação dos paradigmas do ensino da arte.
O "Projeto Arte para Criança" propõe, além da edição de livros, apoio pedagógico aos professores, apostilas sobre os artistas da série e exposições de "museus volantes" nas escolas. Em diferentes Estados brasileiros, algumas escolas já têm participado desse trabalho, adotando livros para a realização de atividades interdisciplinares, orientadas pela coordenação do projeto.
A coleção Olharte está vinculada ao acervo do MAC/USP e foi lançada em outubro último junto com a exposição "Ler para Ver", com obras do museu. Vale sublinhar que estas duas coleções pretendem a veiculação de obras de arte para crianças como parte de uma atuação pedagógica mais ampla, buscando auxiliar diretamente o professor na utilização do material que oferecem. Textos informativos, assessoria na implantação do projeto, exposições que permitem o contato das crianças com obras de artistas brasileiros, formam um conjunto de procedimentos que podem criar situações de aprendizagem estruturadas para sedimentar uma formação estética de qualidade.
São iniciativas extremamente bem-vindas, já que muitos professores familiarizados, por exemplo, com a "Proposta Triangular para o Ensino da Arte", criada por Ana Mae Barbosa, encontram enorme dificuldade para pesquisar obras de artistas brasileiros. Esta "Proposta" formula a integração entre a produção artística dos alunos, a apreciação de obras de artistas e sua contextualização pela história da arte, como os três eixos básicos da aprendizagem artística. A formulação é clara, mas os professores "sofrem" uma formação tão precária que se vêem perdidos, carentes de instrução e informação em todos os níveis.
A questão não é simples. Ao contrário, diante desse quadro repleto de lacunas, abrem-se brechas para projetos educativos oficiais que simplesmente pretendem abolir a arte do currículo mínimo das escolas. Por isso, também, as duas coleções cumprem um papel importante no encontro das crianças com a arte. Mas são bem diferentes. Usando um jargão antigo, já meio fora de moda, poderíamos dizer que uma é mais apolínea, a outra mais dionisíaca.
A primeira, o "Projeto Arte para Criança", tem como ponto de partida a obra visual. Cada livro apresenta obras de um artista plástico brasileiro, numa sequência alinhavada pelo texto literário de um escritor inspirado nas diferentes reproduções. A sequência narrativa conserva sua autonomia e ao mesmo tempo inventa um diálogo às vezes mais explícito, às vezes mais sugestivo com as obras plásticas. O resultado é um trabalho conjunto onde cada forma artística mantém sua especificidade, as pranchas de um lado, o texto de outro, com elegância e sobriedade. Alguns livros são sóbrios demais, eu acho. De qualquer maneira, o texto não descreve a imagem, mas conta a história das ressonâncias que as formas visuais trazem ao escritor. São muitos os artistas visuais e os artistas da palavra, de diversas regiões do Brasil. Assim, são múltiplas as combinações entre eles, nesses dez livros da coleção.
Os textos são excelentes, as reproduções muito bem-cuidadas. É louvável, por exemplo, a inclusão de um livro sobre arte popular, narrado por Ana Maria Machado. São diálogos às vezes introspectivos, às vezes em forma de biografia, às vezes reflexivos, dirigidos a diferentes faixas etárias. Fico imaginando as crianças folheando os livros: "Mas eu não estou vendo isso que o autor está falando desse quadro!". Quer dizer que ela está vendo outra coisa, isso é o que importa. Ao mesmo tempo, o texto, independente do quadro a que se refere, ressoa na criança, pela sua qualidade e pelo seu poder de comunicação com o universo infantil. Ou então: "Eu nunca tinha pensado que um artista pode fazer o que quiser com o tempo!". Aqui me refiro ao texto de Luís Fernando Veríssimo, que conversa com a obra de Glauco Rodrigues. Assim, como quem não quer nada, o autor propõe, penso que especialmente para adolescentes, uma reflexão sobre o papel do artista como arteiro do tempo. Num diálogo instigante, ágil, divertido, magnificamente encadeado, exerce a função de um bom professor, que não ensina, mas faz pensar.
Os livros da coleção Olharte têm uma proximidade mais evidente com o universo da criança, pelo seu caráter mais lúdico, menos sóbrio. A conversa entre os artistas invade o espaço das páginas, ousando criar o próprio livro enquanto forma artística. A obra de arte visual também é o ponto de partida, mas não necessariamente está integralmente reproduzida no livro. Por exemplo, no volume sobre Goeldi, Luise Weiss, como artista plástico, cria eloquentes formas visuais, apropriando-se de recortes destacados das obras desse artista.
O quadro na sua íntegra está no museu e a bela invenção plástica de Luise é um convite a conhecê-la. O texto de Alberto Martins não apenas se realiza enquanto criação poética, mas também conversa graficamente com as formas em cada página, integrando a visualidade do livro. Além disso, é um convite imaginativo à reflexão sobre a arte, dando às crianças uma oportunidade de perceberem a linha como elemento básico da forma visual: "O homem acordou no meio da noite: 'Quem é que estica a linha do horizonte?' Vestiu o chapéu, o capotão e abriu a porta". Assim começa a história. Assim se abre a porta do universo plástico para a criança. Não com uma descrição ou explicação sobre a linha, mas com uma pergunta que leva a curiosidade do autor (e a da criança) a percorrer e compor inúmeras experiências de horizonte e de linha. Sem ser didático, o texto, entre outras coisas, instiga o olhar, realizando uma forma criadora de pedagogia da arte. Desfiando a linha do horizonte, o livro tece uma experiência vertical de percepção. Por isso, talvez, possa ser trabalhado com qualquer faixa etária. Pois não é o ser humano de todas as idades, finalmente, o ponto de encontro entre a linha horizontal e a vertical?
O fato plástico não é narrativo por natureza. Se a obra visual narra alguma coisa, é a experiência do artista de combinar formas, cores, texturas e ritmos dentro de um determinado espaço, segundo uma idéia plástica e não discursiva. Tal experiência pede um certo tipo de percepção neste nível abstrato de formatividade, como substrato da fruição estética. Por outro lado, do ponto de vista pedagógico, a experiência de um artista da palavra, ao conversar com a obra visual, pode dar subsídios para que a criança descubra aspectos do universo artístico, seja revelando a natureza daquela obra específica, seja chamando a atenção para determinadas figuras que a compõem, informando sobre a vida do artista, pensando princípios genéricos de formatividade plástica, ou focalizando a significação do fazer artístico na cultura.
De qualquer maneira, os livros destas duas coleções só podem ser trabalhados de forma eficiente pelo professor, se ele tiver clareza do caráter singular e único da conversa entre texto poético e obra visual: trata-se de uma experiência subjetiva de apreciação, que se realiza como criação e não como interpretação redutora da forma visual à narração. O contato com esta conversa entre dois artistas serve como nutrição para que o professor faça, em primeiro lugar, a sua leitura, tanto do texto quanto da imagem visual. A partir daí, pode instruir as crianças para ler e ver. É importante que as crianças não vejam as imagens apenas com os olhos do escritor: a obra visual não é o que o escritor viu, mas também o que ele viu. Os livros destas coleções são um ponto de partida para a criança construir sua própria apreciação.
A reflexão contemporânea sobre o ensino da arte exige o convívio da criança com a criação artística, para que ela possa dialogar com imagens que falam da qualidade de existir, de pensar, perceber e significar o mundo. Para que ela possa entender que as imagens estereotipadas que a bombardeiam em enorme quantidade todos os dias, são de mentirinha. O belo trabalho destas duas coleções deveria ser um bom exemplo para outras iniciativas que pudessem atender às especificidades de cada realidade educacional do país.

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