São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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A nova era da barbárie

JOSÉ LUÍS FIORI

O Mundo Depois da Queda
Emir Sader (org.)
Tradução: Jamary França
Paz e Terra, 447 págs.
R$ 27,00

"A presteza com que os eventos de 1989 se encaixam no esquema explanatório materialista básico... basta para assegurar que, jubilantes ou desesperadas, as informações sobre a morte da teoria marxista são no mínimo prematuras" (Joseph McCarney)

Um dos fenômenos mais instigantes desta nova era liberal-conservadora que estamos vivendo é o desaparecimento aparente do "pensamento crítico" do cenário político. Em quase todo o mundo, os intelectuais que um dia militaram ao lado do "espírito de oposição histórica" (Kurz) hoje aparecem associados ou fazem a defesa intransigente das forças sociais e políticas que eles, naquela mesma época, chamavam de "direita". Em alguns lugares, como na recente "revolta francesa" de dezembro de 1995, muitos dos que lideraram intelectualmente a "revolução de maio de 68" assumiram a defesa aberta do governo conservador da França, contra os trabalhadores sindicalizados.
Em outros, como no Brasil, um grupo expressivo dos mesmos intelectuais, que militaram na resistência de esquerda ao regime militar, organizaram-se num pequeno grupo tecnocrático de poder, aliaram-se com os partidos conservadores, derrotaram o candidato de esquerda nas eleições presidenciais e hoje conduzem um programa de reformas liberais atuando como árbitro bonapartista entre os vários segmentos da direita brasileira.
Em todos os casos a autojustificação no plano das idéias tem sido sempre a mesma: "O progresso tecnológico desconstruiu o paradigma do trabalho e deixou o Capital na condição exclusiva de vanguarda de uma modernidade desregulada e global". Como consequência, o progresso passou a ser sinônimo -coincidindo com a velha fórmula de Adam Smith- de tudo o que libere o movimento do Capital, o que, no mundo contemporâneo condenaria ao conservadorismo a todos os que defendam regras ou estruturas de solidariedade e proteção social, obra de um lento e doloroso processo de democratização que, segundo eles, transformou-se num entrave à realização de duas miragens rigorosamente "metafísicas": o equilíbrio fiscal e a competitividade global, a nova fórmula mágica do crescimento econômico e do bem-estar coletivo.
Não é muito difícil, tampouco, identificar o caminho lógico que conduziu a parte mais ortodoxa da velha esquerda marxista às suas novas convicções neoliberais. Entre nós, pelo menos, salvo honrosas exceções, ela nunca teve densidade teórica própria. E quando se converteu ao desenvolvimentismo em nome de que "nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém" o fez pela mão ideológica do nacionalismo isebiano ou pela mão teórica do estruturalismo cepalino sem jamais aprofundar sua defesa do recurso à intervenção do Estado nem adequar sua visão do socialismo às condições da sociedade brasileira. Pelo contrário, aderiu a um produtivismo tão radical que sua defesa equiparou-se a do materialismo vulgar sem que sobrasse espaço para as questões da democracia e da desigualdade social.
Ao mesmo tempo, a quase permanente ilegalidade desta esquerda tradicional contribuiu para convertê-la a uma ética de sobrevivência que entortou seu raciocínio estratégico na direção de um realismo que, paradoxalmente, conseguiu ficar, através do tempo, cada vez mais dogmático. Sem contar com a força do anticolonialismo, nem com a adesão do movimento operário organizado, pôde construir livremente seus argumentos e alianças como se fossem uma dedução quase direta e sempre necessária dos requerimentos econômicos das "forças produtivas" e dos requerimentos políticos de uma "revolução burguesa tardia". A partir daí e na ausência de um horizonte socialista não foi difícil realinhavar as mesmas teses e as mesmas deduções aos novos tempos, só que agora, em vez de ser a partir do Estado, a partir do Mercado; em vez de ser em nome da burguesia industrial, em nome do Capital puro e simples; em vez de ser a favor do protecionismo, a favor da desregulação; e, finalmente, em vez de ser em nome do socialismo futuro, é em nome apenas de uma modernidade abstrata.
Nesse sentido pode-se dizer que aqueles que um dia foram intelectuais críticos e hoje estão aliados com a direita, seguem tão ou mais utópicos do que antes, apenas trocaram de lado. Com a diferença que agora, devido à sua posição de poder, difundem uma impressão de consenso que se auto-explica, na versão mais simplória, pela "queda do muro de Berlim" e pelo suposto desaparecimento das diferenças entre a esquerda e a direita; e numa versão mais realista, como resultado da aceitação pragmática do único caminho deixado pelos "nouveaux maŒtres du monde", os mercados financeiros. Tudo acompanhado de um "silêncio enfático com relação às massas que um dia foram o Deus da intelectualidade" (Kurz), da apologia pouco original do indivíduo racional e eficiente e da aceitação sem reservas, segundo Ralph Miliband "de um conservadorismo epistêmico, sobre os limites do que é possível..." (pág. 137). Conservadorismo ofuscado por obra de uma extraordinária vitória publicitária, que conseguiu encobrir a verdadeira natureza do mudancismo liberal, inscrevendo na categoria do "reformismo" o que não passa de uma desconstrução institucional sem respaldo estratégico, mas dotada de um sentido radicalmente anti-social e antidemocrático.
De repente, no meio deste cenário feito de consensos e convergências, e quando já parecíamos condenados a ouvir ou ler estas mesmas platitudes diariamente, a tradução de "O Mundo Depois da Queda" traz aos leitores brasileiros a certeza de que o pensamento crítico não morreu e de que a esquerda ainda apresenta sinais de vida inteligente. Os 20 ensaios, apesar de sua heterogeneidade, apresentam no seu conjunto uma reflexão crítica, ampla e original -em clave de esquerda e às vezes marxista- sobre vários ângulos da realidade contemporânea, e propõem algumas pistas capazes de orientar uma leitura do movimento da globalização econômica e da nova ordem política e ideológica mundial que escape ao cerco "mediático" estabelecido pela mesmice teórica dos "novos liberais".
Em trabalhos posteriores, Hobsbawm e Arrighi, dois colaboradores da coletânea, desenvolveram uma visão histórica e estrutural mais detalhada dos processos econômicos desencadeados ou acelerados pelo esgotamento, nos anos 70, do acordo de Bretton Woods. Processos econômicos que, somados à vitória política das forças neoconservadoras, abriram as portas à difusão do ideário liberal, acompanhado das políticas macroeconômicas de corte deflacionista, e ao avanço acelerado da globalização financeira. Nesses trabalhos, eles explicam a maneira pela qual a convergência destes processos com a queda do mundo comunista e o fim da Guerra Fria descalçaram, em última instância, o principal suporte de uma das peças angulares de Bretton Woods: a possibilidade de compatibilização entre uma ordem econômica internacional liberal e políticas de desenvolvimento e/ou proteção das riquezas e bem-estar nacionais.
Depois disso, nos anos 90, chegou a hora do que Belluzzo chamou recentemente de "vingança do econômico contra as pretensões de autonomia da política". É sobre este momento que se concentram as melhores análises do livro, quando sublinham o papel da derrota ideológica do socialismo no avanço sem peias dos mercados e das forças políticas conservadoras, que vão destruindo (ou "reformando") todas as vitórias sociais e jurídicas dos trabalhadores e das forças políticas social-democratas; e quando identificam os impactos socioeconômicos mais importantes desta nova realidade que vai emergindo por obra dos mercados desregulados.
Destacam a maneira pela qual a universalização e intensificação da concorrência, acompanhada da globalização dos mercados financeiros, provocam uma acelerada centralização de capitais e concentração do poder de decisão, da riqueza e do conhecimento tecnológico, levando a uma diminuição do tempo do trabalho necessário, das taxas de investimento e do ritmo de crescimento. Identificam a forma como o desaparecimento das regras e das fronteiras deixa o Capital cada vez mais entregue às suas próprias leis de movimento, fazendo com que suas crises sejam também, cada vez mais, resultado exclusivo de suas contradições. E denunciam a forma em que a concentração da riqueza vem acompanhada da diminuição da renda do trabalho e do aumento do empobrecimento absoluto dos assalariados, dentro e fora do "núcleo orgânico" do capitalismo mundial, fatores responsáveis pelo visível aumento da polarização entre países e classes sociais e pela multiplicação dos sintomas do que Hobsbawm diagnostica como uma nova era de barbárie.
A partir desta visão histórica e estrutural é que se podem extrair do livro duas conclusões. Primeira, no plano político: existem razões suficientes para manter vivo e absolutamente diferenciado o espaço da esquerda, mesmo neste momento de derrota, como última linha de resistência contra o perigo de que nos adverte Hobsbawm: "Se uma ação pública e de planejamento não for iniciada por pessoas que acreditam nos valores da liberdade, da razão e civilização, será iniciada por pessoas que não acreditam nesses valores, porque terá de ser iniciada por alguém. E o mais provável é que seja iniciado pelo fenômeno mais perigoso do nosso 'fin de siècle': os regimes nacionalistas e xenófobos" (pág. 226).
E a segunda, no plano teórico: se a implosão dos países comunistas pôs em xeque as projeções estratégicas do materialismo histórico, ela reaproximou o capitalismo do seu retrato teórico desenhado pela "crítica da economia política" feita por Marx. Jrgen Habermas é quem melhor sintetiza esta lição quando afirma que: "Da mesma forma que no passado, ainda hoje é possível fazer a crítica do capitalismo a partir da tradição marxista, uma crítica que agora talvez seja mais necessária do que nunca, já que, com a queda do Estado socialista, aumentou a auto-afirmação do capitalismo" (pág. 394). As notícias sobre a morte da teoria marxista são pelo menos prematuras.

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