São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Energia elétrica: o carro adiante dos bois

REOLANDO SILVEIRA

Registra a crônica teatral interessante episódio em que a encantadora bailarina Isadora Duncan propôs ao grande teatrólogo inglês Bernard Shaw que os dois deveriam ter um filho: "Imagine um ser humano com a minha beleza e com a sua inteligência... Seria a síntese da perfeição humana!", dizia ela. Ao que ele retrucou: "Não, não deveríamos ter um filho: poderia ser um monstro. Imagine uma criatura com a minha feiúra e com a sua inteligência..."
Na mesma linha de preocupação do teatrólogo inglês, achamos que a proposta de reestruturação do setor elétrico de São Paulo, tal como formulada pelo governo, poderá levá-lo a não alcançar os objetivos a que se propõe e, pior que isso, a uma degeneração da qualidade dos serviços prestados pelas estatais de energia elétrica, baixando os níveis de eficiência técnica do setor e obtendo uma participação da iniciativa privada insuficiente para sanar as suas dívidas. A proposta é omissa e inoportuna.
Omissa porque procura escamotear a característica básica dos serviços elétricos, qual seja, o seu enquadramento no campo de atividades universalmente reconhecidas como serviços de utilidade pública, seja por sua natureza de monopólio natural, seja por sua essencialidade e pelos aspectos sociais que envolve, seja pelo baixo risco e alta intensividade do investimento exigido.
Igualmente a proposta é omissa quanto ao destino desse patrimônio formidável representado pelo corpo técnico das empresas, forjado em dezenas de anos de trabalho e dedicação.
Inoportuna por sinalizar para uma reestruturação a nível estadual exatamente quando o modelo do setor elétrico, a nível nacional, passa por profundas modificações e começa a engatinhar no sentido de sua reformulação.
Fatores variados determinaram a degeneração que vem experimentando o setor elétrico, levando as empresas a uma quase insolvência. A nível federal, permanecem sérias dúvidas e indagações: a inadequabilidade da nova lei de concessões de serviços públicos ao impedir o livre acesso dos interessados (empresas estatais ou privadas) às novas concessões de geração hidroelétrica (lei 8.987 de fevereiro de 1995); política tarifária indefinida e confusa negligenciando totalmente a característica de serviço de utilidade pública do setor.
Ao sinalizar para a privatização, o governo federal ainda não definiu as garantias a serem oferecidas aos investidores tanto quanto ao retorno do capital, como também em relação às interferências operativas; não está definido quem será responsável pelo planejamento e coordenação da expansão do sistema.
Reunirá o DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica) condições para licitar as 44 usinas (total superior a 10 mil mW) previstas no plano 2015 da Eletrobrás, sabendo-se que é um órgão burocrático, com limitado corpo técnico e jurídico, no qual se incluem funcionários comissionados das próprias concessionárias?
Quem será responsável pelos projetos dessas usina a serem licitadas? E as tarifas, como serão reajustadas? O investidor privado aceitará o princípio de aproveitamento múltiplo dos rios que encerra aspectos contraditórios? Essas e muitas outras dúvidas ainda persistem a nível federal.
A nível estadual, o governo propõe a desverticalização das funções básicas das empresas e o agrupamento de várias usinas em "unidades de negócio".
Essas novas empresas de geração, privatizadas, na lógica da competitividade buscarão otimizar a produção de energia própria e isto está longe de se obter a sinergia que as usinas integradas num único sistema propiciam.
E como ficará o despacho de carga, as reservas de armazenamento para controle de enchentes, o trânsito de reativos nas linhas de transmissão, a especialização das usinas na integração da curva de carga (usinas de base, intermediárias e de ponta)?
Estamos, pois, diante de um quadro de descontinuidade e de incertezas em relação àquilo que sempre foi o forte do setor elétrico e do país, como muito bem assinalou o engenheiro Peter Greiner, secretário nacional de Energia do MME, em seminário promovido pela revista "Eletricidade Moderna".
E justamente diante desse quadro preocupante, vem o governo do Estado propor a desestruturação das empresas!
Qualquer que seja a solução aventada, e outras existem, é imprescindível a definição antecipada das regras a nível nacional. A introdução da competitividade no setor encerra aspectos contraditórios que só regulamentação pode conciliar, por intermédio de um órgão forte que ainda não existe.

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