São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Decreto do medo

BETO RICARDO; CARLOS MARÉS

Os índios serão obrigados a concluir que o seu direito só é reconhecido no ácido jogo de força
BETO RICARDO e CARLOS MARÉS
Estabelece o Estatuto do Índio que o procedimento de demarcação de terras indígenas deve ser regulamentado em decreto do presidente da República. Até agora vigia o decreto nº 22/91, editado pelo governo Collor. Tinha imperfeições e seguramente não atendia às reivindicações indígenas, principalmente porque afastava as comunidades da participação direta no processo.
Mesmo assim o decreto nº 22 foi utilizado para demarcar inúmeras e importantes terras indígenas pelo Brasil afora. Afinal trata-se apenas de uma norma legal procedimental, porque a garantia, o conceito, a dimensão e a necessidade das terras indígenas estão incorporados à Constituição Federal, a qual, aliás, reconhece o direito dos índios às terras, independentemente da demarcação.
O decreto apenas regulamenta o procedimento pelo qual a União reconhece as terras indígenas garantidas na Constituição: não as cria, não as inventa, nem as pode diminuir. Por isso, todos os atos praticados pela União, fundados no já revogado decreto 22, são legítimos, têm a presunção da legitimidade dos atos administrativos e a garantia que o sistema jurídico dá aos atos perfeitos.
O ministro da Justiça, Nelson Jobim, mesmo enquanto deputado federal, em setembro de 1993, assinou parecer encomendado pelo então governador do Pará, Jader Barbalho, apontando uma inconstitucionalidade no decreto nº 22: faltar-lhe-ia o contraditório, isto é, a manifestação e explicitação de eventuais direitos ou interesses contrariados pelo reconhecimento dos direitos garantidos pela Constituição.
Por considerar descabida uma arguição de inconstitucionalidade sobre um decreto regulamentar, o STF não declarou o nº 22 inconstitucional, mas o advogado-deputado não se conformou.
Logo após assumir o Ministério da Justiça e, assim, por ironia do destino, estar encarregado da questão indígena, Jobim retomou a obsessão e declarou que não demarcaria uma única terra indígena enquanto não revogasse o decreto nº 22 e, em seu lugar, pusesse novo procedimento que contemplasse o chamado princípio do contraditório.
Espalhou a quatro ventos que o nº 22 era inconstitucional, disse ter aferido a opinião de ministros do STF e convenceu o presidente da República de que tinha uma fórmula para sanear todas as áreas indígenas sob suspeita de terem sido demarcadas por procedimento inconstitucional.
Levou um ano para tirar do bolso do colete a solução mágica. Nesse ano restou aos índios esperar pelas demarcações já atrasadas, afinal era apenas mais um ano em quinhentos. E o que veio depois de um ano inteiro de conversas, marasmo e espera?
O decreto nº 1.775, publicado em 8 de janeiro, que caça a possibilidade dos índios de reivindicar a revisão de demarcações insuficientes, introduz o contraditório, com longos e generosos prazos para contestações das novas demarcações, e gera medo às comunidades indígenas, pois abre uma rodovia que permitirá aos interesses antiindígenas trafegar na contramão de terras já demarcadas.
Vamos analisar melhor essa contravia: o decreto do governo possibilita a reclamação de qualquer interessado retroativamente para revisar as terras já consolidadas com decreto presidencial, isto é, ataca atos jurídicos perfeitos.
Esse é, provavelmente, o principal sentido do novo decreto, porque o dispositivo é inócuo, se fosse sincero.
Não havia necessidade do dispositivo se apenas quisesse o ministro dizer que nas demarcações em curso se aplicaria o novo decreto. Novas normas procedimentais se aplicam a processos em curso, diz a lei, não poderia dizê-lo diferente o decreto. Entretanto apenas aos procedimentos em curso se aplica a nova lei, e o ministro fez com que se aplicasse aos procedimentos já consumados com a chancela presidencial, mas sem o registro em cartório.
Quer dizer, o novo procedimento retroage a terras já consolidadas, colocando uma armadilha a todas as terras indígenas demarcadas pelo revogado nº 22: o decreto abre a temporada de caça às terras indígenas, mesmo as já demarcadas e homologadas por atos jurídicos perfeitos. Considerando-se o passado de advogado de interesses antiindígenas do ministro articulador do decreto, é impossível não suspeitar de que essa retroatividade antijurídica tenha endereço certo, mas isto só poderá ser conhecido, mantido o decreto, depois da aplicação das novas disposições, em cerca de seis meses.
Também é bom analisar os prazos do decreto: 90 dias para apresentar reclamações, somados aos 60 dias para análise e mais 30 dias para decisão, completando 180 dias, meio ano. Os prazos dos procedimentos administrativos e mesmo judiciais costumam ser muito mais curtos. Por que então essa generosidade paga com o direito dos povos indígenas?
Talvez a resposta se encontre na leitura da pauta de discussões do Congresso, o que explicaria também a demora em editar um decreto que estava pronto e ameaçava sair há mais de seis meses.
Com o decreto, o governo espera ganhar votos da raivosa bancada antiindígena, por abrir sorridente a temporada de caça. Mas, ao mesmo tempo, tenta apaziguar os defensores dos índios dando a palavra de honra de que não diminuirá nenhuma área indígena e que o decreto é saneador.
Só quem perde são os próprios índios: não apenas porque passarão 180 dias de agonia e medo, mas porque sabem que, historicamente, no "mexe-remexe", os governos adulam os poderosos e desprezam os direitos, protelando as demarcações e condenando os índios à invasão e morte.
Mais uma vez os índios serão bucha de canhão. Mais uma vez serão obrigados a concluir que o seu direito só é reconhecido pelo Estado no ácido jogo de força, apesar das doces palavras da Constituição.
O ministro Jobim, em nota divulgada pela Folha na edição de 20/1, diz que o novo decreto torna mais democrática a demarcação das terras indígenas e pede aos índios que continuem normalmente suas atividades, plantando e cuidando de suas roças, caçando e pescando... Parece brincadeira. O medo só será aliviado com a substituição do decreto 1.775.

CARLOS ALBERTO RICARDO, 45, antropólogo, é secretário-executivo do Instituto Socioambiental (SP).

CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO, 49, advogado, é presidente do Instituto Socioambiental (SP). Foi procurador geral do Estado do Paraná (1991-94).

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