São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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São Brás

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Confusão de última hora, agravada pelo calor que consegue embrutecer os mais brutos, esqueci de comemorar, sábado passado, o dia de São Brás, epíscopo e mártir, tido e havido como protetor dos males da garganta. Não conheço do santo a biografia, sei apenas que morreu em 316, pouco depois da conversão do imperador Constantino, daí não saber porque há séculos seu nome é invocado na hora das sufocações, dos catarros, das espinhas de peixe e ossos de galinha que cismam de ficar encravados naquilo que os prosadores quinhentistas chamavam de guelras.
Ignoro se a liturgia católica, que passou por mais reformas do que nossa Previdência Social, ainda promove, depois da missa a ele dedicada, a bênção das gargantas, duas velas em cruz que enforcam o devoto enquanto o celebrante invoca a intercessão do santo para proteger nossas goelas.
Parece que os peixes de hoje têm menos espinhas. O fato é que agora pouca gente se engasga na hora das refeições. Antigamente era uma tragédia. Nos lares, nos restaurantes, pelo menos uma vez por semana alguém se levantava da mesa, a mão na garganta, apoplético -e era um Deus nos acuda, comia-se farinha para fazer a espinha descer, prendia-se a respiração, bebia-se água e, sobretudo, invocava-se a ajuda de São Brás. Casos mais desesperados iam parar no pronto-socorro.
Mas não bastava invocar o santo. Recomendava-se que alguém batesse nas costas do sufocado e desse uma palmada, de baixo para cima, ao ritmo cadenciado de "São Brás! São Brás!".
Havia especialistas nisso. Na minha rua, um espanhol era considerado infalível nessa salvadora arte. Chamava-se Arranca, convocavam-no para emergências dramáticas, ele dava uma porrada seca, letal, tal e tamanha que se o sufocado não vomitasse os pulmões estava salvo. Depois todos agradeciam ao santo e o espanhol era o primeiro a fazê-lo.
Já tive problemas com a garganta. O espanhol Arranca desaparecera dos meus horizontes, não podia me salvar. Agarrei-me a São Brás -e agora o esqueci. Ou melhor, quase ia esquecendo.

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