São Paulo, terça-feira, 6 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brodski escreveu sobre pânico do presente

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Entrei na livraria Barnes and Noble, em Nova York. Não sei por quê, tive vontade de comprar um livro do Josef Brodski. Nunca tinha lido nada dele, só uma entrevista. Na foto da revista, eu lembro, parecia que ele estava me olhando. Além disso, ele tinha a mesma idade que eu. Só que ele ganhou o prêmio Nobel e a Academia sueca ainda não considerou meu nome.
Josef Brodski é um grande poeta e ensaísta. Foi preso na União Soviética em 64, logo depois da "abertura" do Kruschev, quando houve o recongelamento das liberdades. Acusaram-no de "parasita social" e mandaram-no para um "gulag". Saiu, dois anos depois e foi morar nos Estados Unidos.
Teve a experiência de sair do comunismo e entrar no individualismo. Ficou na faca de dois gumes, "blade runner", correndo no fio da lâmina da história. Nem comuna traidor, nem americanófilo deslumbrado. Carregou na alma o sonho europeu de futuro e a intensa vivência de "presente" dos americanos.
Na livraria, compro uma coleção de ensaios de Brodski. E leio o primeiro. É um artigo sobre as "Meditações" do imperador romano Marco Aurélio. Este rei-filósofo escreveu há 2.000 anos um livro de melancólica sabedoria sobre as regras de viver com justiça e bondade, suportando com fortaleza o tempo finito da vida. O rei-filósofo se impõe duras regras éticas. Só que ele era o dono do mundo!
O ensaio de Brodski é cheio de curvas escuras, sobre a antiguidade e a filosofia e vai suavemente nos levando ao presente histórico do mundo e vai virando uma funda reflexão sobre nossa crise da pós-utopia. Acabo de ler o ensaio, emocionado. Abro o jornal e vejo que Joseph Brodski tinha morrido naquela noite.
- Mas Joseph, eu mal acabei de te conhecer e você já vai embora?
- Que se vai fazer? Chegou a hora. Você não leu "A morte de Ivan Illiitch" de Tolstói? Pois é.
- Joseph, lendo este teu ensaio sobre o imperador, eu tive a impressão que você falava de agora, deste impasse, deste "novo" ao avesso que vivemos hoje.
- Acho que só a poesia consegue tocar levemente com a ponta dos dedos o que está rolando por aí. É tudo muito novo, tudo muito gelatinoso ainda, é um protozoário, é a morte das certezas do totalitarismo e dos individualistas. Está se formando uma nova enteléquia...
- O quê?
- Ahh... "enteléquia", uma força vital, um agente formador de crescimento no mundo que ainda não está claro. Acho até bom que a teoria não dê conta dela, que fique tudo no mistério, para acabar com a arrogância desses franceses que acham que tudo é inteligível. As "Meditações" de Marco Aurélio são uma espécie de post-scriptum da "República" de Platão, e eu fui buscar este "presente" tão antigo em Roma, porque Marco Aurélio não escreveu para a posteridade. Ele escreveu para o "presente" dele. E todos os presentes são iguais.
Eu acho que estamos vivendo hoje um grande pânico: o pânico do presente. Eu acho que só agora o homem está descobrindo na carne que não tem qualquer procedência, nem qualquer consequência. Está descobrindo uma dolorosa finitude e um despropósito na existência que ele sempre procurou evitar. E não falo de niilismos nem de pessimismos...
- As religiões...
- Não. Falo do fino pensamento político, dos intelectuais.
Epiteto, o estóico, o escravo-filósofo, êmulo de Marco Aurélio, o rei-filósofo, disse que o que "a origem dos males do mundo, da crueldade, da covardia, não é a morte; é o medo da morte".
O escravo e o rei sabiam que o homem não tem controle sobre seu futuro, como não teve sobre seu passado. E tudo o que o homem perde na morte é o dia em que ela acontece. Melhor dizendo, o resto do dia em que se morre... Por isso, Marco Aurélio e o escravo Epiteto nunca permitiram que o medo da morte os influenciasse. Nunca deixaram que o "não-ser" colorisse o seu "ser". Por isso, Marco Aurélio foi meu mote para o mundo atual. Nada mais atual que ele. O estoicismo "is back!"
Ouça Marco Aurélio: "Lutar contra o que acontece é um ataque à natureza". "O Universo é mudança, a vida é opinião". "Os homens vêm ao mundo por causa dos outros homens. Eduque-os ou tolere-os". "A mente do Todo é social". "A mais nobre forma de retribuição é não ser como o seu inimigo". "Todas as coisas são a mesma: óbvias na experiência, passageiras no tempo e sórdidas na matéria". "O que não é bom para a colméia, não é bom para a abelha".
A humanidade levou 15 séculos para que o pensamento de Marco Aurélio fosse reiterado por Spinoza e hoje, alguns séculos depois, se reencontra com a morte e a natureza.
- Joseph, ninguém vai entender isso que você está falando...
- Entenderão. Não entender tudo é bom sinal. O mundo que temos pela frente é uma imprecisa água-viva, o mundo é uma forma desconhecida como a morte. Quanto mais medo da morte, mais utopia. As utopias, o fim da história, o paraíso sobre a terra são a ilusão de que a morte é controlável, de que a morte pode ser vencida. Sozinhos na luz solar do mercado e do fim do futuro, este apetite pelo infinito está acabando. Vinte séculos depois, vem Marco Aurélio e nos diz que a ética é o único critério do presente, pois ela transforma todo ontem e todo amanhã em agora.
É exatamente aquela flecha que em cada momento da trajetória está parada. Como fazer uma utopia do presente, como tolerar a morte e ser feliz, como lutar pelo bem? Eu saí da URSS, de um futuro que não chegava nunca, para um presente que não acaba mais, um "enorme presente", nos EUA. Aqui, existe uma inocência quase estúpida que é, por outro lado, uma amostra de autonomia humana, que é quase trágica. Não há utopia coletivista que apague este individualismo. Esta tal gelatina, a enteléquia de que falei, sairá daí, da morte não-dominada, do óbvio do mundo, do solar brilho das coisas, do mercado de parcialidades que não lidam com o futuro.
Não há solução; só dá para fazer uma permanente busca ética, como fez Marco Aurélio, no presente, no passado, isto é, no "seu" presente. E veja bem: isto não significa resignação, nem pessimismo. Seria um erro chamar o estoicismo, na sua aceitação da realidade perceptível, de resignação com o mal do mundo. "Serenidade" seria um melhor termo; até "melancolia" poderia se usar, mas a melancolia de reis sábios.
Raramente políticos se interessam por filosofia, mas filósofos se interessam por política. A "divisão" de Marco Aurélio reinando sobre si mesmo, o homem mais poderoso do mundo colocando freios em seu próprio poder, é a imagem maior de uma ética para hoje. O imperador Marco Aurélio via seu poder com melancolia. E os melancólicos são modernos porque não esperam muito e raramente ficam histéricos. Os melancólicos são bem razoáveis e, como dizia Marco Aurélio, "o que é razoável é social".
Nada existe para o futuro. Perder as esperanças nas utopias liberais ou socialistas, perder a esperança "tout court" foi o início de uma nova era, uma nova sabedoria. Benditos sejam os que amam o parcial, porque herdarão a terra.
Se as "Meditações" são a antiguidade, nós é que estamos em ruínas.
- Joseph, foi superlegal te conhecer... Pena que você tenha que ir.
- A vida é breve. Aproveita.

Texto Anterior: Mostra de Lina Bardi é produto de exportação
Próximo Texto: Livro e CD fazem memória da bossa nova
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.