São Paulo, quarta-feira, 7 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Debate sobre maconha chega atrasado

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O que me espanta nos debates sobre a descriminação da maconha é o fato de acontecerem tão tarde. Há bastante tempo, 20 anos pelo menos, o uso da maconha é visto com naturalidade por muita gente das classes média e alta. Até o presidente Bill Clinton já disse ter fumado. Sem tragar, como todos sabem, e citam a frase com um sorriso.
A declaração de Bill Clinton é representativa de uma ambiguidade. Claramente, ele temia perder os votos dos "maconheiros", que são muitos. E também dos que se escandalizam com a maconha, que não são poucos. Nos Estados Unidos como no Brasil estabeleceu-se uma divisão social curiosa. Os dois grupos -quem fuma e quem não fuma- estão segregados há tanto tempo, que num setor o "baseado" é a coisa mais corriqueira do mundo, e em outro é visto como pior do que o enxofre, invenção de Belzebu.
Espanta-me também que só agora, com o sistema de apitos inventado nas praias do Rio, tenha surgido uma espécie de mobilização ativa, de campanha de desobediência civil em torno do tema. Antes disso, as pessoas se contentavam com algumas palavras de ordem enunciadas não muito a sério, do tipo "legalize it" -não por acaso, a frase era pronunciada em inglês, como que a marcar distância entre quem a dizia e o conteúdo do que era dito. Ou então, tudo se resumia a alusões cifradas em algumas músicas populares.
O debate ganhou outra força com o método do apito. A repressão policial é enfrentada, de forma pacífica mas muito eficiente. E nada me convence de que alguém possa ser preso apenas porque está apitando na praia. Pode alegar que não é maconheiro, e sim um salva-vidas amador.
Mas continuo achando estranho que só agora se tenha, com os apitos, levado o uso da maconha à esfera pública. Os apitos parecem dizer não apenas "olha a polícia", mas também "olha aí, a gente está fumando". É muito diferente de uma canção que piscava o olho para os iniciados, contendo em sua letra algumas palavras -"baseado", por exemplo- de sentido inacessível ao caretão comum.
Aqui chegamos, creio, ao ponto essencial do debate. (Peço desculpas pela caretice da frase.) Mas é o seguinte. Havia, até algum tempo atrás, um certo prazer juvenil relacionado à maconha, que era o de "fazer as coisas escondido". Um pouco para tornar os pais mais caretas do que são, um pouco para afirmar a própria identidade adolescente, era sem dúvida importante que a maconha fosse território proibido, mesmo para quem a consumisse.
Soube de casos perversos nesse campo. Uma jovem, prendada e prestimosa, resolveu fazer um bolo de chocolate por ocasião de uma festividade familiar. Pôs maconha na receita. Serviu o bolo para todos -pais, avós, tios- e deliciou-se ao vê-los doidaços. Seu maior prazer, claro, foi o de saber que eles nem tinham consciência do estado em que estavam.
Por aí se pode ver um do motivos do atraso nas discussões sobre o assunto. O segredo, o inadmissível, o proibido funciona como fator de excitação no uso da maconha. Há outras razões, contudo.
A primeira é, evidentemente, geracional. Pessoas de 40, 50, 60 anos foram jovens na década de 60. Experimentaram de tudo. Hoje são deputados, presidentes, juízes, e pela primeira vez essas funções públicas tendem a guardar na garganta um pigarro de tolerância.
Por menos que se queira, a inovação e o ímpeto libertário agem muito devagar. As ilusões dos anos 60 -amor livre, ioga, LSD, vida em comunidade- revelaram ter fôlego curto. Foi-se percebendo, custosamente, a inércia dos mecanismos sociais. Os impulsos revolucionários daquela época parecem hoje simples espasmos; o amor livre recuou diante dos instintos pré-históricos do ciúme, a sabedoria oriental não garantiu o "futuro dos filhos" nem cobriu de azul o saldo bancário, o LSD não revelou verdades profundas ao ser humano, a vida em comunidade cedeu ao mais razoável conforto de um apartamento com piscina na Vila Madalena.
Estranho que o envelhecimento de uma geração ganhe, com isso, foros de verdade universal. "O homem não muda", "tudo será sempre a mesma coisa...". Conclusão radical demais, que é claramente um efeito do radicalismo esperançoso da época anterior.
Apesar dos fracassos, nem tudo ficou igual ao que era. Para lembrar uma velha canção de Belchior, as pessoas ficam sim "iguais a nossos pais". Mas também ficaram diferentes, embora a frustração de seus projetos tenda a torná-las cegas para o fato.
Seja como for, de todo o turbilhão comportamental dos anos 60, algumas coisas ficaram incólumes. Uma delas é o uso da maconha. Eis aí o melhor argumento a favor de sua liberação. Antigamente, maconha estava associada a tudo quanto é anárquico, contestatário, subversivo. Hoje, executivos de grande empresa, deputados, juízes, como já disse, abandonaram tudo o que é subversão e atitude contestatária, mas não abandonaram a maconha. Há maconheiros de direita. Razão pela qual se pensa em liberá-la.
Óbvio que há outros argumentos. O álcool, sem dúvida, é muito mais pernicioso que a maconha, e sua venda é livre no país. Mas não sei se isso é argumento. A partir dessa constatação, é tão legítimo defender a descriminação da maconha quanto defender a proibição da bebida.
Acontece que o álcool tem uma imagem neutra socialmente. Há o pinguço do bar, há o magnata que abusa do uísque 20 anos. O escândalo da maconha provém de uma outra história. Era coisa de negros, de favelados. Ainda hoje, quem comercia a erva maldita tem de ter um pé na cozinha. À falta de traficantes confiáveis, isto é, de classe média, há quem se aventure pelas quebradas do subúrbio para arranjar o entorpecente.
O problema da maconha se confunde, assim, com o do "status" social. A juventude dos anos 60 não se preocupava muito com essas coisas. Tinha o hábito de identificar tudo com tudo: proletários e traficantes, revolução e droga. É só quando a maconha deixou de ser coisa de morro que se pensa em liberá-la. É só quando se dissociou da revolução que um grande número de pessoas admite que ela não tem perigo maior. É por ser coisa de morro que a consumiam. É por não ser mais coisa de morro que seu consumo vai ficando aceito.
É só uma questão de tempo a sua liberação. Qual o medo? Talvez o medo de uma coisa que dê tantos prazeres, que prometa tantos paraísos... Medo de que as pessoas percam suas responsabilidades, seu senso do dever, entregando-se a uma delícia alienada e apaziguante. Mas essa é a imagem que faz da maconha quem nunca a experimentou. A promessa paradisíaca das drogas nunca é real. Ainda não se inventou a droga absoluta, aquela que realize de fato a promessa de uma fuga, de um vôo, de um prazer sem nenhum efeito. Quando descobrirem isso, a sociedade desaparecerá. Mas a maconha, francamente, é inócua nesse aspecto. Haja vista quem a experimentou.

Texto Anterior: Roterdã termina com recorde de público
Próximo Texto: Bender e Tarantino formam dupla inseparável
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.