São Paulo, quarta-feira, 7 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Nem tudo brilha na América do sonho

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O contraste inicial dá o tom a "Assassinato em Primeiro Grau". Primeiro, antes mesmo dos letreiros, as imagens de um cinejornal narram com segurança, sem qualquer ambiguidade, uma frustrada tentativa de fuga de Alcatraz, na Califórnia, em 1938.
Logo em seguida, vemos o prisioneiro Henri Young -um dos dois únicos sobreviventes da fuga- jogado em uma solitária, onde permanecerá durante mais de mil dias, ininterruptamente, com direito a duas saídas de meia hora ao longo de todo esse período.
Quando deixa, enfim, a solitária, Young mata o presidiário que havia delatado os companheiros à direção do presídio. Vê-se, então, numa situação infernal: condenado inicialmente pelo roubo de meros US$ 5 de uma agência do correio, torna-se réu de um assassinato em primeiro grau, cometido diante de 200 testemunhas.
Um julgamento para ser feito em cinco minutos, segundo a opinião geral. Um julgamento complexo, segundo o novato advogado da defesa, James Stamphil (Slater). Para ele, o réu foi apenas a arma. A culpa do assassinato recairia sobre Alcatraz, sua direção e, mais remotamente, sobre o FBI de Edgar Hoover.
Em suma, Stamphil entende que é o caso de colocar em questão o sistema penitenciário norte-americano e algo mais, no momento em que o país prepara-se para entrar na guerra.
Não será demais notar que estamos em 1941, no coração da era Roosevelt, numa América segura de suas instituições e valores. Isto é, a América do sonho americano.
O que se segue é uma mistura de filme penitenciário e filme de tribunal que não desonra a tradição hollywoodiana dos combates entre um homem só (o advogado) e uma poderosa instituição.
O que talvez particularize o filme de Marc Rocco seja o fato de abster-se da busca de uma verdade final (ou inicial). Não se trata de descobrir se o réu é assassino ou não (ele é), mas de ampliar e discutir o conceito de culpabilidade, relativizá-lo, buscar descobrir o que, num crime, é da ordem do sujeito, e o que é da ordem social (tanto mais que o prisioneiro Young tem sua subjetividade devastada pelos anos de solitária).
A segurança e a clareza da narrativa, a boa direção de atores (Kevin Bacon está notável, Christian Slater, muito bem), a capacidade de instaurar a crise, levando o olho do espectador a abrir-se para algo que não vê, são as maiores virtudes do filme.
Sua âncora é a identidade que instaura -por meio de uma série de fusões- entre advogado e réu.
Seus pontos fracos são, com toda certeza, o trabalho excessivo (e um pouco dispersivo) de câmera em certos momentos e o tom sentimental que adota no final: maneira de mascarar a tragédia de que o filme trata.
Apesar dele, "Assassinato em Primeiro Grau" mostra-se à altura da tradição liberal americana. Quando as certezas nacionais transformam-se em arrogância, e a arrogância em cegueira, é saudável instaurar a dúvida.

Filme: Assassinato em Primeiro Grau
Direção: Marc Rocco
Elenco: Christian Slater, Kevin Bacon, Gary Oldman
Distribuição: Abril Vídeo (tel. 011/837-4542)

Texto Anterior: São Paulo perde sua memória fotográfica
Próximo Texto: "Antes do Amanhecer" mostra sentimentos sob o signo da perda
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.