São Paulo, quarta-feira, 7 de fevereiro de 1996 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Nem tudo brilha na América do sonho
INÁCIO ARAUJO
Logo em seguida, vemos o prisioneiro Henri Young -um dos dois únicos sobreviventes da fuga- jogado em uma solitária, onde permanecerá durante mais de mil dias, ininterruptamente, com direito a duas saídas de meia hora ao longo de todo esse período. Quando deixa, enfim, a solitária, Young mata o presidiário que havia delatado os companheiros à direção do presídio. Vê-se, então, numa situação infernal: condenado inicialmente pelo roubo de meros US$ 5 de uma agência do correio, torna-se réu de um assassinato em primeiro grau, cometido diante de 200 testemunhas. Um julgamento para ser feito em cinco minutos, segundo a opinião geral. Um julgamento complexo, segundo o novato advogado da defesa, James Stamphil (Slater). Para ele, o réu foi apenas a arma. A culpa do assassinato recairia sobre Alcatraz, sua direção e, mais remotamente, sobre o FBI de Edgar Hoover. Em suma, Stamphil entende que é o caso de colocar em questão o sistema penitenciário norte-americano e algo mais, no momento em que o país prepara-se para entrar na guerra. Não será demais notar que estamos em 1941, no coração da era Roosevelt, numa América segura de suas instituições e valores. Isto é, a América do sonho americano. O que se segue é uma mistura de filme penitenciário e filme de tribunal que não desonra a tradição hollywoodiana dos combates entre um homem só (o advogado) e uma poderosa instituição. O que talvez particularize o filme de Marc Rocco seja o fato de abster-se da busca de uma verdade final (ou inicial). Não se trata de descobrir se o réu é assassino ou não (ele é), mas de ampliar e discutir o conceito de culpabilidade, relativizá-lo, buscar descobrir o que, num crime, é da ordem do sujeito, e o que é da ordem social (tanto mais que o prisioneiro Young tem sua subjetividade devastada pelos anos de solitária). A segurança e a clareza da narrativa, a boa direção de atores (Kevin Bacon está notável, Christian Slater, muito bem), a capacidade de instaurar a crise, levando o olho do espectador a abrir-se para algo que não vê, são as maiores virtudes do filme. Sua âncora é a identidade que instaura -por meio de uma série de fusões- entre advogado e réu. Seus pontos fracos são, com toda certeza, o trabalho excessivo (e um pouco dispersivo) de câmera em certos momentos e o tom sentimental que adota no final: maneira de mascarar a tragédia de que o filme trata. Apesar dele, "Assassinato em Primeiro Grau" mostra-se à altura da tradição liberal americana. Quando as certezas nacionais transformam-se em arrogância, e a arrogância em cegueira, é saudável instaurar a dúvida. Filme: Assassinato em Primeiro Grau Direção: Marc Rocco Elenco: Christian Slater, Kevin Bacon, Gary Oldman Distribuição: Abril Vídeo (tel. 011/837-4542) Texto Anterior: São Paulo perde sua memória fotográfica Próximo Texto: "Antes do Amanhecer" mostra sentimentos sob o signo da perda Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |