São Paulo, quarta-feira, 7 de fevereiro de 1996
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O Sivam e a comunidade de pesquisa

RENATO DAGNINO

A idéia de que o Sivam possa servir como alavancador do nosso desenvolvimento tecnológico tem embasado a capitalização do escândalo que ele tem provocado por uma aliança de um dos atores do meio militar -os "guerrilheiros tecnológicos"- com um segmento da comunidade de pesquisa.
As denúncias de corrupção e má aplicação de recursos que cercam o Sivam, por serem corriqueiras na área de produção militar mundial e por ocorrerem em muitas esferas da política pública nacional, não causam surpresa. Mas testar sua validade exige que o Sivam seja situado na história da produção e pesquisa militares brasileiros.
A dinâmica do setor tem respondido ao jogo de interesses dos atores do meio militar. Buscando uma alternativa ao maniqueísta e disfuncional divisor de águas da "linha dura", se propõe uma tipologia de três atores. Eles se diferenciam pelas funções ou missões militares (em muitos casos autodesignadas), as porções do aparelho de Estado de que buscam se apropriar e pelas estratégias de legitimação social e sobrevivência burocrática que buscam implementar em aliança com os civis. Correndo o risco imposto pela brevidade, pode-se dizer que os "profissionais" (P) teriam como missão a defesa do país contra agressões e buscariam influir nas relações externas, zelando pelo nosso poder de autodeterminação.
Os "intervencionistas" (I) teriam como missão a defesa interna, e buscariam se apropriar do aparato policial e influenciar os rumos da política interna.
Os "guerrilheiros tecnológicos" (GT) teriam como função prover os meios de defesa e buscariam se fortalecer no âmbito do sistema de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, colocando suas expectativas de legitimação no impacto tecnológico e econômico que sua ação determinaria. A partir dessa tipologia, e de indicadores quantitativos e qualitativos do poder de cada ator, é possível esboçar a trajetória do setor de produção e pesquisa militares nas últimas três décadas.
Durante o período 65-75, e após uma etapa de acumulação de capacidade tecnológica, os "GT" logram instalar, em aliança com empresários "schumpeterianos" (e sem a participação da comunidade de pesquisa), uma indústria de tecnologia média voltada para a exportação ao Terceiro Mundo. Esta consegue reverter a tendência à importação de sistemas sofisticados, de interesses dos "P", e inviabiliza, dado os recursos que passa a absorver, a aquisição interna de seus próprios produtos. O fim da guerra Irã-Iraque provoca o colapso da indústria em 88, já engatilhado pela ordem unipolar que se instauraria. Isso permite desfazer a cortina de fumaça dos "czares das armas" e a explicitação de seus impactos, se não negativos, insignificantes, nos planos econômico e tecnológico.
O pouco atrativo caminho da reconversão industrial levou à "auto-reconversão" dos militares. Inviabilizada a produção de armas, os "GT" se centram, durante o período 89-93, em programas mais sofisticados (artefato nuclear, míssil balístico e submarino à propulsão nuclear), guiados por novos anseios de prestígio, mas mantendo a já "passada de moda" racionalização dos "spin offs" econômicos e tecnológicos.
Enquanto isso ganham força os "P", que habilmente colocam a modernização do equipamento como condição para a reorganização das Forças Armadas (redução e relocalização do efetivo visando à defesa externa). O orçamento militar, que em 90 havia mais que triplicado o de 85, diminuiu nos anos seguintes, acirrando o questionamento sobre os recursos alocados àqueles programas. Pressões internacionais e a ineficiência de seus gestores também contribuíram para seu debilitamento. O período 94-95 se inicia com os "I" em evidência. Ao ocupar as favelas do Rio, ocupam também o vácuo de projeto de legitimação deixado pelos "GT". Mas ele é também dos "P": um bilionário negócio "da Rússia": armas obsoletas x bens agrícolas.
A diminuição do seu poder relativo na definição dos rumos do setor colocou os "GT" e seus aliados civis à procura de uma oportunidade para revertê-la. Argumentos tão esdrúxulos como o de que o fim da Guerra Fria abria nichos para os produtos daqueles programas num mercado dito em expansão ou de que, porque haviam sido iniciados, deviam prosseguir, foram levantados. A oportunidade buscada se materializa com o Sivam. Ele parece ser o pretexto para retomar a estratégia de sobrevivência burocrática dos "GT".
Os "GT" são os únicos que têm mantido uma postura convincente para as elites civis. A óbvia ameaça que re presentam -a ultrapassada visão geopolítica dos "P" para as relações externas e o aumento do poder de intervenção dos "I" para o processo de democratização- tornam essas estratégias de legitimação ainda mais perigosas. A aliança que ora se reforça entre os GT e um segmento da comunidade de pesquisa, com razão acuada pelo desmantelamento da estrutura de C&T, não é, entretanto, desprovida de riscos. Bilhões de dólares foram enterrados no setor de produção e pesquisa militares pelo regime militar sem se ver resultados econômicos, sociais ou de capacitação tecnológica (e muitos menos científica) que os justifiquem. A estratégia que parece animar aquela aliança poderia aumentar ainda mais o prejuízo. Embora não seja a primeira vez que se tenta aumentar a alta destinação de recursos públicos à pesquisa militar (quase 20% do total para uma produção inferior a 0,2% do PIB), ela soa hoje especialmente falaciosa e extemporânea.
Falaciosa porque o atual mercado mundial não deixa lugar para produtores marginais e, mesmo se deixasse, o custo de oportunidade em forçar uma entrada seria proibitivo, dada a comprovada ineficácia macroeconômica e social que internamente produz.
Se é verdade que vasos sanitários que equipam os submarinos americanos custam dez vezes mais do que os vendidos no mercado, a eficiência tecnológica de seu complexo militar (apontado como o mais ineficiente do mundo) não deve nada à do brasileiro. Os EUA nele aplicam 50% dos recursos de pesquisa públicos, mas alcançam um nível de produção militar de 4% do PIB: "eficiência" dez vezes superior à brasileira.
Extemporânea porque cresce a consciência da comunidade de pesquisa de que a reversão do processo que a ameaça, denunciado como uma ação de elites reacionárias e inconscientes, só ocorrerá na medida em que se aliar a atores bem distintos: aqueles que dela crescentemente dependerão para sair da condição de miséria em que foram colocados.
O cenário de democratização econômica que sucederá à fase da democratização política contém demandas, produtivas e tecnológicas, em que só a antecipada concentração do nosso potencial de pesquisa poderá equacionar o escasso tempo social que iremos dispor.
Mais que os muito duvidosos "spin offs" de programas como o Sivam, o que se necessita é mobilizar esse poten cial para o enfrentamento de nossos problemas emergentes. Dado a originalidade desses, pode levar a uma dinâmica inovativa endógena e auto-sustentada e à exploração de importantes espaços econômicos internos e externos.
Os segmentos mais significativos da comunidade de pesquisa sempre se negaram a colaborar com o desenvolvimento de tecnologia com aplicações militares. Hoje, ao mesmo tempo em que escasseiam os recursos e aumenta a cobrança da sociedade pelo resultado de suas pesquisas, abrem-se oportunidades de uma reversão do estado de alienação social a que ela se tem imposto.
O que é só mais um caso infeliz de aquisição de tecnologia estrangeira não pode ser tergiversado. O fato de envolver recursos mais elevados que o usual não pode servir de pretexto para que al guns de seus membros lancem a comunidade de pesquisa numa ingênua e danosa cruzada de "defesa da ciência nacional" ao lado de setores que nada têm a ver com os objetivos por ela traçados.

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