São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 1996
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Lei Seca terá agora alcance continental

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A situação é grave quando um verbo parece pouco a uma língua que quer expressar angústia nova, coletiva. Discute-se por aí a "descriminalização" ou não das drogas, como se o verbo existente, descriminar, não fosse bastante forte e poderoso. Ou fosse primo muito próximo de "discriminar". Acontece que os dicionários só registram descriminar, com o sentido de "absolver, tirar a culpa de, excluir a criminalidade" (Aurélio), ou de "tirar a culpa de", "isentar de culpa" (Koogan Larousse).
Trata-se, portanto, de descriminar ou não as drogas, e, diante de tal pergunta, todas as pessoas de índole sã e vida ordenada respondem que se deve isentar de crime quem é levado à droga e incriminar quem a vende. Mesmo porque a pergunta carrega em si o pressuposto de que quem se droga uma vez ingressa logo no grupo dos que podem ficar dependentes. E não há quem seja a favor de dependência da droga, seja a droga qual for.
O país que, pelo que vejo nos jornais e revistas, mais coragem e experimentalismo demonstra em relação à droga é a Holanda, onde as autoridades têm tudo permitido, em termos do consumo de drogas, com tolerância paternal, ou quase maternal, em relação às vítimas. O evidente objetivo holandês não é o de estabelecer que o ser humano tem o direito de se destruir, se é isso que deseja. É, pelo contrário, a esperança de que a permissividade retire do consumo da droga seu duvidoso "glamour" e lamentável desafio.
Imagino que os holandeses em parte se inspiram -usando forma contrária- na famosa experiência dos americanos com a Lei Seca, a "Prohibition", como diziam eles. Os Estados Unidos tentaram, por motivos éticos, religiosos, políticos acabar drasticamente com o alcoolismo no país. E exageraram muito. Acabaram fazendo à Constituição uma certa emenda 18, que proibia a bebida. Além dos argumentos éticos houve lá, durante a 1ª Guerra Mundial, até os alimentares: os cereais deviam alimentar os soldados e não virar cachaça nos alambiques. Nos Estados Unidos, como se sabe, uma vez posta em vigor uma lei vigora, fenômeno que aqui no Brasil nos parece inexplicável.
A Lei Seca pegou furiosamente e um dos seus resultados foi a criação de um contrabando de bebidas e do seu fabrico local e ilegal em proporções gigantescas. A Lei produziu ninguém menos que Al Capone. A única atividade industrial que colheu fartos benefícios da "Prohibition" foi o cinema, com sua série de filmes de gângsteres que se metralhavam nos bares de Chicago e Nova York. Foi a era de James Cagney, de George Raft. Afinal, exaustos, os americanos, em 1933, cancelaram com outra emenda a de número 18, e tomaram um porre cujas sequelas duram até hoje.
Em lugar da Lei Seca entraram em cena os Alcoólicos Anônimos.
A diferença, infelizmente, é que a atual questão das drogas é infinitamente mais grave e perigosa. O álcool sempre acompanhou e tem dado uma ajudazinha ao homem no seu progresso e civilização. Um dos mais venerados patriarcas da Bíblia é Noé, que espremeu as primeiras uvas para que fermentassem e nos dessem uma visão premonitória do paraíso.
Eu tive quatro amigos que sabiam tudo sobre a arte de beber e deles sinto até hoje muita saudade. Dois eram do Rio, Paulo Bittencourt, o diretor-proprietário do "Correio da Manhã", e o embaixador Maurício Nabuco. Dois de São Paulo, o escritor e político Paulo Duarte, e o jornalista Marcelino de Carvalho, meu companheiro de trabalho na BBC de Londres e na Radiodiffusion Française, dono de uma preciosa adega na cobertura do Edifício Ester, praça da República, centro da Paulicéia. Os três últimos citados nos deixaram breves mas preciosos estudos sobre as bebidas e os alimentos que devem acompanhá-las.
Estou pensando nesses quatro amigos exatamente porque todos, sem exceção, reagiam com vivacidade a qualquer comparação entre drogas e bebida. Os vinhos, os uísques, as bagaceiras e os conhaques foram surgindo mediante o trabalho do homem que se civilizava e ia inventando, para o que bebia, até as garrafas e os copos especiais. Que tem isso a ver com fungações, injeções e pílulas?
Uma das coisas mais levadas a sério nas universidades inglesas é a bebida. Todo jantar, ali, começa com xerez e termina com vinho do porto. Para que assim seja, desde a Guerra Peninsular os ingleses passaram a fazer seu próprio "sherry" em Jerez de la Frontera, na Espanha, e seu vinho do Porto no próprio Porto, Portugal. Nas universidades os professores, depois do jantar, se reúnem em torno de uma mesa para conversar e beber porto que os próprios ingleses fazem, "fortified".
Desculpem o intermezzo meio frívolo, mas o que eu queria, relembrando amigos e vinhos, era separar o joio da droga do trigo do álcool e lembrar que para acabar com o tráfico de drogas os Estados Unidos deviam fechar a elas seus portos, já que é para os Estados Unidos que elas sobretudo vão. Todos conhecem os males mundiais que a droga está causando e não há nada mais eloquente do que a desmoralização ética e política que seu tráfico já causou ao México e está causando, cada dia mais claramente, à Colômbia.
Mas a grande Terra da Promissão da droga é, como se sabe, a terra que produz os dólares. A única e grande diferença que os americanos têm que enfrentar agora é que os Al Capones se multiplicaram e que a droga causa estragos maiores e bem mais fundos que o álcool.
Está entrando agora em cena um certo general americano chamado McCaffrey, herói, ao que se diz, tanto do Vietnã quanto da Guerra do Golfo. O primeiro pronunciamento que vi do general é em tom pacifista. Ele parece achar que não vai ser necessário matar muitos "latinos", pois, no Panamá onde já se encontra como chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, ele acha que já tem informações suficientes para tomar decisões definitivas sem maiores derramamentos de sangue.
Mesmo assim, vai advertindo que considera a violência dos barões da droga maior que a dos vietcongs. Oremos para que McCaffrey se preocupe mais com os barões da droga instalados nos Estados Unidos.
Quanto ao Brasil, temos que rever e fortalecer uma velha Lei de Entorpecentes de 1976 e transformá-la num instrumento que iniba a circulação da droga no país e proteja o usuário, pondo o traficante na cadeia. Que assim se faça. E oremos, no caso do Brasil, para que a lei, como se diz, pegue.

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