São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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A quimera natural

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romance, como gênero literário, nunca esteve em paz consigo mesmo. Considerado em suas origens como um passatempo fútil, o discurso romanesco sempre buscou justificativas externas à sua atividade para acalmar a consciência intranquila de seus leitores. Foi assim que os primeiros teóricos do romance justificaram a existência do gênero, vinculando-o a um objetivo mais nobre -a instrução e a edificação moral.
Com base no preceito de Horácio de que é preciso instruir e divertir ao mesmo tempo, o romance forjou seu álibi perante o tribunal ético ao se afirmar como a pílula dourada para os espíritos fracos: a verdade amarga era por ele escamoteada sob o disfarce adocicado dos encantos da fantasia.
Passaram-se os séculos, os tribunais reformularam seus critérios, mas a necessidade de justificar o romance por razões extraliterárias permaneceu inalterada. O naturalismo, por exemplo, quis transformar o relato romanesco num bem de utilidade pública, a serviço do desvelamento das chagas do mundo real.
A imunização contra os devaneios tornou-se um artigo de fé para o romancista, preocupado agora em colher as referências externas da realidade e recriá-las experimentalmente, à maneira dos cientistas, no laboratório do romance.
A insistência na verossimilhança e o mal-estar demonstrado diante da imaginação são evidentes, por exemplo, no maior escritor naturalista, Émile Zola (1840-1902), de quem se publica "Do Romance", uma coletânea de ensaios cujo tema central é o romance e seus reflexos nas obras de Stendhal, Flaubert e os Goncourt.
É bom lembrar que existe uma grande disparidade entre o romance naturalista e o discurso crítico sobre esse romance. Nas obras de Zola, ao contrário do que propõe sua teoria, as imagens tomadas de empréstimo à realidade sofrem um constante processo de transfiguração, no qual o sentido próprio é contaminado pelo figurado e os núcleos de significado são organizados não apenas em termos naturais e fisiológicos, mas também no plano metafórico e simbólico.
Neles o ambiente físico não é um elemento absoluto, mas um dado constitutivo da narrativa; a proposta teórica de diluir o homem nos objetos que o circundam, por exemplo, é refutada pelo próprio autor com a operação inversa -a antropomorfização das máquinas, como a locomotiva em "A Besta Humana" e o alambique em "L'Assomoir". Flaubert foi um dos primeiros a reconhecer esse trânsito entre o textual e o alegórico ao afirmar, numa carta ao amigo, que "Nana se volta ao mito sem deixar de ser real".
O programa teórico do naturalismo de Zola, na verdade, não é uma teoria do romance, mas um estudo sobre a correlação entre a arte e o real. Sob influência de Taine e Claude Bernard, seu método reserva um espaço enorme à investigação minuciosa da realidade, como dão prova seus infindáveis "carnets d'enquêtes" -uma espécie de "nil admirari" às avessas- para o ciclo dos Rougon-Macquart. Seu objetivo, certamente ingênuo, era a transposição direta da realidade para a obra, uma simples duplicação dos fatos sem a interferência criativa do autor. Daí a razão de Zola repudiar o termo "romance", em cujas origens predomina a atividade imaginativa, o que curiosamente faz lembrar o mesmo desprezo pelo gênero professado por Diderot em "Éloge à Richardson", ainda que num registro diametralmente oposto.
Mas, se o romance é a reprodução milimétrica daquilo que já existe, em que consiste afinal sua diferença em relação à realidade? "Se era para fazer igual", como diz Antonio Candido, "porque não deixar a realidade em paz?"
Segundo Stevenson, o que infunde vida ao romance não são as "semelhanças inevitáveis" com a realidade, mas sua "oposição deliberada e significativa", articulada de forma coerente. A questão do realismo não diria respeito à "verdade fundamental", mas sim ao manejo hábil das técnicas narrativas: o poder de convencimento de um texto depende mais de sua organização interna que de sua referência ao mundo exterior.
Zola, neste sentido o verdadeiro antípoda do escritor escocês, caiu no velho pecado de justificar a literatura por algo que lhe é externo, ignorando que a obra literária não é o reflexo, mas a condição constitutiva da realidade por ela estruturada. Ao repudiar a legitimidade intrínseca da ficção e equacionar a ética com a estética, Zola esqueceu que a literatura não é juízo, mas figuração.

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