São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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O nostálgico lirismo de uma cronista

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

O cotidiano é feito, em sua maior parte, de banalidades, mesquinharias e irritações, esteja você em Paris ou em Barbacena. Observá-las, chamar atenção para elas por meio da linguagem escrita, transformando-as em breves momentos poéticos, é tarefa que requer distanciamento, capacidade de abstração, certa maturidade vivencial -trabalho de cronista, enfim, que resulta, como definem os teóricos, entre o conto e a poesia.
A mineira Cláudia Fares mergulhou nisso, com certeza, e estréia em livro com "A Fonte Onde se Bebe", coletânea de crônicas inéditas que registram momentos e personagens da infância da autora no interior de Minas Gerais, de seu "séjour" na França, onde fez doutorado, além de "anotações" a partir de filmes, programas de TV ou pinturas.
No início do livro, Fares rememora "personagens míticos que povoaram o mundo de nossa (dela) infância". São crônicas menos do dia-a-dia e mais da lembrança de tempos idos. Aí se destacam em qualidade literária, "As Lavadeiras" e "Tio Agostinho".
Na primeira, a autora reconstitui as figuras de Dina e Donana, lavadeiras e passadeiras da casa da família. À maneira de Marcel Proust, que dá para a criada Françoise um destaque imenso em diferentes pontos do seu "Em Busca do Tempo Perdido", Cláudia Fares expressa aqui uma espécie de gratidão às duas empregadas. Diz o texto:
"Ambas encarnavam, então, a força telúrica em sua modéstia, em seu prosaísmo e também em seu mistério. Mistério de vidas comuns que lavam e passam. Dina e Donana, há muito, já passaram para a outra vida".
Em "Tio Agostinho", a propósito de um tio médico, lê-se:
"Num mundo que anunciava a reificação da regra e que, cada vez mais, enclausurava os homens em categorias, Tio Agostinho era um defensor convicto da singularidade: cada doente reagia de uma forma, curava-se por um meio, cada homem guardava um segredo".
A qualidade de cronista do cotidiano aparece mais claramente nas partes "Tour de France" e "Com os Olhos de Alegria", em que Fares reúne epifanias a respeito do uso tipicamente francês de palavras como "desolado" ou como o verbo "frapper" (bater); comenta programas e documentários da TV francesa sobre o Brasil; e, entre outros elementos de cotidiano, descreve um dia de chuva, abordando ainda cães e gatos na paisagem urbana, como não poderia deixar de ser quando se fala de Paris.
Há também uma verve de ensaísta espalhada por várias partes do livro. No texto que fecha a obra, por exemplo, intitulado "O Beijo de Munch", Fares revela sensibilidade de analista ao abordar telas do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944). Vale a pena uma citação um pouco mais longa:
"A obra de Munch encerra, num poder de síntese genial, em imagens definidíssimas, a representação do que é a vida em sua prolixidade: o comovente langor de uma menina doente, o beijo quase eterno, o tempo que não é infinito onde se unem e se separam homens e mulheres, e o homem com a cabeça entre as mãos. Esta última imagem é a que sempre nos remete a Munch. Assim, nem desconfiamos que estas mãos podem guardar uma centelha de futuro, onde tudo acena para o possível: inclusive para o paraíso de um grande beijo".
O mérito maior da autora de "A Fonte Onde se Bebe" está na leveza, na construção criteriosa das frases, na limpidez, no traço poético que emprega em seus textos. De tal forma que não será nada estranho se seu próximo livro for de poemas.
Ao final da leitura, no entanto, sente-se certa falta de inquietação temática, de um pouco de ardência, de sangue autoral. A cronista parece "boazinha" além da conta. Ironia e acidez estão ausentes. Uma nostalgia excessivamente melosa povoa grande parte dos textos, o que, em que pese o apuro na estética, transforma em algo inofensivo, quase água-com-açúcar, o conjunto de crônicas reunido aqui. Assim, não deixa de parecer sinal de tempos confusos o fato de o livro ser apresentado por dois escritores de perfil marcadamente "hard-core", como João Antônio (que fez a "orelha") e Sérgio Sant'Anna (que o prefacia).

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