São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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A revolução dos porquinhos

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

O merecido sucesso de "Babe - o Porquinho Atrapalhado", cujo único defeito é ser felinamente incorreto, promete fazer pelos suínos o que os filmes da Lassie fizeram pelos cães da raça collie nos anos 40. Pessoas de todas as idades e crenças estéticas saem encantadas do cinema, não raro convencidas de que precisam rever seu conceito sobre aquelas infaustas criaturas quase sempre só amadas pela carne e bacon que produzem.
(E às vezes nem por isso, conforme atestam os milenares hábitos alimentícios de judeus e muçulmanos.)
Terá Babe mais sorte que os seus antecessores? (Poucos, diga-se. Não me lembro de outros cerdos simpáticos além dos indefesos Três Porquinhos perseguidos pelo Lobo Mau, do cândido e gago Porky Pig, do pachorrento Arnold da TV e do angelical leitão Dondinho.)
Espero que tenha, pois já é tempo de se dar aos porcos o apreço que merecem. Para tanto, precisamos nos expurgar de vários preconceitos. Naturalmente porcos, por exemplo, eles não são. Se criados em ambiente limpo, e não em chiqueiro, mantêm-se mais limpos que um cachorro. Ou seja, o porco só é porco por culpa do homem. Mas a difamação, de origem bíblica, não apenas se perpetuou como deu azo a outros opróbrios. A julgar pela fábula de George Orwell, "Animal Farm", o porco, além de sujo, tem vocação para tirano e sádico, é um Hitler (ou um Stálin), sem as atenuantes lúbricas dos demônios que tentaram desviar Santo Antônio do caminho da santidade.
Os chineses, sábios em tantas coisas, os respeitam mais do que nós, ocidentais. No horóscopo deles, o porco ("zhu") simboliza simplicidade e coragem, calma e operosidade. Os nascidos sob este signo têm excelente relacionamento com as pessoas e obtêm sucesso pela simples razão de se acreditarem predestinados ao êxito. Humphrey Bogart, Hemingway e Hitchcock eram de porco. Woody Allen também é. Como há um ano vivemos sob o signo do porco, é bem possível que por trás do estouro de "Babe" nas bilheterias e de sua unânime consagração pela crítica haja o dedo, ou melhor o casco, de um "zhu" que tudo vê e controla. (A propósito, o Ano do Porco termina no próximo dia 18, quando então terá início o do rato, outro bicho de má fama que, ao contrário do porco, só foi representado de forma benigna nas figuras de Jerry e do Sig, este criado por Jaguar e transformado em mascote do semanário "Pasquim", em cujas páginas, aliás, nasceu o supracitado Dondinho, bacorinho mítico bolado por Ivan Lessa, Millôr Fernandes e o suinófilo que vos fala.)
"Em janeiro, um porco ao sol, outro no fumeiro."
Este é um dos 75 provérbios que encontrei numa decrépita edição de "Os Bichos nos Provérbios", de Christovam Araújo, na qual fui avaliar a popularidade do porco e a extensão dos preconceitos que o desonram. Pouco conhecido, só o destaquei para mostrar como os porcos adquirem certa importância nas primeiras semanas do ano. Cães, gatos e cavalos inspiraram maior quantidade de ditos populares, mas os porcos não fizeram feio se comparados a bichos de melhor reputação como o coelho (15 provérbios), o galo (41) e a galinha (43). A regra, claro, é o escracho. Escracham com a gordura dele, com o seu rabicho ("aí, a porca torceu o rabo"), como o seu focinho ("...não é tomada"), com a sua alegada falta de sofisticação ("dar pérola aos porcos") e com a sua inferior serventia ("virei montado nem que seja numa porca"). Daí a minha predileção pelos provérbios que lhes enaltecem a vidência e a clarividência:
Um: "Quando os porcos bailam, adivinham a chuva".
Outro: "O porco sabe o pau que coça".
Embora mundialmente usados como recipientes para moedas, a pérolas e riquezas que tais eles certamente não dão valor algum. Luxo menos frívolo encontram na música, bálsamo para os seus ouvidos, segundo T.H. White, autor de um alentado "Bestiário", em que o porco, infelizmente, pouco aparece. De qualquer modo, White lhe deu mais atenção que Konrad Lorenz e outros mestres em bicharada. O que me obrigou a trocar os zoólogos de praxe por eruditos de outras searas, como Irving Massey, que a um notável estudo sobre literatura e metamorfoses deu o título de "The Gaping Pig" (University of California Press, 1976).
Na capa do livro, um detalhe da gravura "O Filho Pródigo", de Albrecht Duerer, protagonizada por uma família de javalis, que nada mais são do que porcos selvagens, acepipe atualmente em alta em 15 restaurantes paulistanos e três cariocas. O atual prestígio dos suídeos também tem, como tudo, o seu lado negativo.
O porco boquiaberto a que Massey se refere está em Shakespeare -mais precisamente numa fala de Shylock em "O Mercador de Veneza". Os contemporâneos de Shylock tinham medo de uma porção de coisas, e porco boquiaberto era uma delas. Para eles, um suíno nessa condição significava mau agouro. E, na melhor das hipóteses, um deboche do sorriso humano, mais ultrajante, aos olhos elizabetanos, que o riso de uma hiena.
Animal sagrado para diversos povos antigos e outros ainda encontráveis nos arredores da Papua-Nova Guiné, o porco ornamentou moedas gregas, incorporou-se ao culto de Deméter e aos mitos de Melêagros e Atalanta (eternizado por Ovídio e Swinburne), Ádonis, Átis, Ares, Osíris e Fréia. Só passou a simbolizar coisa ruim, impura, a partir do Velho Testamento e do Corão. Espalhou-se que o Todo Poderoso teria proibido o consumo de sua carne por ser ela nociva ao organismo, e o pessoal acreditou. Na verdade, a proibição fazia parte de uma estratégia ecológica, pois os judeus, constantemente forçados ao nomadismo, não tinham condições de criar porcos em seus habitats semi-sedentários e castigados pela aridez.
Num diálogo imaginado por Heródoto, Odisseus, Circe e uma terceira divindade grega (por ela transformada em porco) discutem os méritos e deméritos da metamorfose. Para surpresa de Odisseus e Circe, o deus que virou porco rejeita a oportunidade de retomar sua forma humana. Achara a vida animal bem mais honesta e decidira continuar como estava, grunhindo de felicidade.
Heródoto foi mais que um historiador, foi um grande fabulista. Com a vantagem de ter vivido antes da criação da Swift.

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