São Paulo, terça-feira, 13 de fevereiro de 1996
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Todos querem ser alguma coisa no mercado

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

As pessoas querem ser coisas. De um tempo para cá, deram para isso. É um novo vício que se instalou com a economia de mercado. As coisas são mais felizes que os homens. As coisas não sofrem, são eficazes.
Tudo que o capitalismo quer são coisas que funcionem. Só nos resta copiar as mercadorias. Uma boa mulher de borracha inflável pode substituir uma namorada. Vi um anúncio numa revista masculina. O retrato da mulher inflável com legenda: "Needs no food nor stupid conversation" (não requer jantares nem papo furado). Marx e Freud chamaram isto, misturadamente, de fetichismo das mercadorias.
Em São Paulo, o caricaturista Laerte, no seu "strip" "Piratas do Tietê", desenha este fenômeno moderno que é o melhor reflexo da vida paulista nas águas sujas do seu rio. No seu traço, vem uma rara sociologia do cotidiano. Criou tipos-coisas geniais.
Um deles é o homem-catraca, outro é o homem-escapamento. A partir destes dois, andar nas ruas de São Paulo virou um pesadelo humorístico: todo mundo tem cara de coisa. A partir da idéia de partir de Laerte, inventei alguns tipos novos, além desses dois. Vejamos alguns:
-Homem-catraca - Gira para a direita ou para a esquerda, ou vice-versa. Podem ser oscilações políticas mas, normalmente, giram de acordo com os desejos dos outros. "Sim, senhor, por favor, por aqui, mais uma chance, entrada, saída, claro, sim, sim, sim, sim!" Nunca "não". "Não", só como "sim" ao contrário. Exemplo: "Foi o senhor que veio pedir aumento?" "Não". Quanto mais azeitado, melhor salário. Não falo do homem-capacho. Nada disso. O homem-catraca vem com um mecanismo de "upgrading" chamado "dignidade aparente" que lhe tira qualquer ranço de sabujice ou humildade. Não confundir com o "puxa-saco". O sujeito pode ser catraca e dono de banco.
-Os puxa-sacos - Também vivem no mercado. Ganham poder ao inverso, fazendo o marketing do outro. Há puxa-sacos do Rio e de São Paulo. O típico puxa-saco de São Paulo é o puxa-saco "de resultados". Este puxa-saco tem um objetivo concreto, um contrato, uma assinatura, um favor. É diferente do puxa-saco romântico do Rio, que vai puxando o saco de todos sem motivo, por pura tradição colonial, por malandragem sem destino.
-Homem-escapamento - Por ele passam as ilusões perdidas. A energia dos processos acaba nele. Fumantes ou não-fumantes. São os intestinos da cidade, fazem as tarefas sujas. Não quer dizer que sejam pobres ou párias, o sujeito pode ser homem-escapamento e finalizar grandes projetos, por exemplo, na zona de Manaus. Um dos homens mais ricos da Índia é um pária, que domina o mercado de cremação de cadáveres no Ganges.
-Mulher lanchonete - Rápidos amores, o McDonald's do sexo, fast fuck. Não confundir com prostituição, profissão pré-capitalista. É a mulher se adaptando ao Big Mac, querendo ser descartável, barata. É a mulher querendo ser aceita, virando a mulher ideal de consumo rápido. Forma um belo casal com os homens-pênis.
-Homem-pênis - A parte pelo todo. Na piada da infância, havia um sujeito chamado Ênis, que no colégio tinha o apelido de Aralho. Metonímias humanas. "Eu sou um pau, apenas." Isso nos dá a irresponsabilidade de um órgão sem corpo e sem culpa. Passaralhos, caralhetas, paus voadores, livres do amor e da ética. Bráulios e os anúncios contra a Aids estão popularizando nossos Aralhos. O homem virando um acessório, um "drive" do próprio pau, este sim, livre e só, como uma mercadoria.
-Homem-xerox - São capazes de escanear em segundos o que quer o outro que está diante deles. A sua infinita capacidade mimética se aguça mais a cada dia. Zeligs. "Sou o que queres. Copio o seu desejo". São parecidos com as mulheres-objeto, centrífugas ou não.
-Mulher-centrífuga - Durante o Carnaval são vistas na plenitude. As mais tentadoras, os corpos mais aerodinâmicos, o bumbum mais rotativo na câmera da TV, mais rápidas, mais obedientes e também mais adaptáveis aos "aralhos voadores". Sorridentes, se oferecem como liquidificadores de carne em uma liquidação de verão.
-Homem-internet - Não tem pai, nem mãe, nem filhos, nem amor, nem dada. Só um e-mail. Atendem pelo nome de hhh.yy/Eu. Em vez de uma nova vida, querem um novo "zip drive turbo".
-Pós-yuppie - Perderam a arrogância dos anos 80. Não usam mais suspensórios nem comem sushi com tanto orgulho. É aparência. O desencanto é apenas um acessório que acoplaram para disfarçar a eterna voracidade.
-Pós-perua - São pares dos pós-yuppies. Dividem-se em dois tipos. Perua light: usa calça jeans, mas não aguenta e põe um colarzinho de pérolas com blusa de seda. Perua hard: tem inveja da rainha Maria Antonieta e das putas. Quer ser as duas ao mesmo tempo. Poderosa e útil, rica e sensual mercadoria. Enfeita-se de ouro e atrativos, acessórios de valor. Esta assume a condição muito anos 90 de autenticidade, ser livre, pós-ideologia e, por que não, cabeleira loura e parure de diamantes falsos imitando móveis Luís 15 etc... Estas imitam estilos de decoração. Há peruas barrocas, peruas Luís 15, peruas Renascença, peruas góticas, peruas pós-modernas, peruas chippendale. E a pós-moderna, que mistura todos os estilos.
-Homem-sanduíche - Todos nós, com pressa no engarrafamento, entre o esporro do patrão e a perda do cliente.
E a lista continua: drag queens, malandros-agulha, falsos otários, babaca hard, babaca soft, grosso-BMW, grosso-Monza, gilettes (hoje, bissexuais), bofes (ver peruas hard). Pardo passeante, por exemplo, só há no Rio: andam dia e noite na rua, de havaiana e calção. De noite, viram pardos ameaçadores. E há também a categoria final, onde estamos todos:
-Nós, os homens-pizza - Depois da falência das revoluções, todos ficamos conciliando nossas impotências. "Importências". Em nossos rostos ficam desenhadas nossas biografias, como tomates em pizzas. Todos nós. Há todos os tipos de cobertura, que vão desenhando em nossos rostos humilhações e feridas do cotidiano. Homens-mozarela, homens-calabresa, homens-margherita... Homens com catupiry.

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