São Paulo, sexta-feira, 16 de fevereiro de 1996
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Leia a mensagem do presidente ao Congresso

Leia a íntegra da mensagem enviada por FHC ao Congresso Nacional:
Senhores membros do Congresso Nacional.
Esta é a segunda vez em que me dirijo a essa Casa no início da sessão legislativa e a primeira em que tenho a oportunidade de apresentar o balanço de um ano de governo.
O ano que passou foi marcado pelos avanços na consolidação de quatro aspectos fundamentais no processo de mudanças da sociedade e do Estado brasileiro, compromisso mais importante de meu governo: primeiro, do processo democrático; segundo, da ética como fio condutor prevalecendo sobre todas as ações de governo; terceiro, da relação de independência recíproca e cooperação entre Executivo e Legislativo, em função do interesse público; quarto, do Plano Real.
Essas quatro dimensões expressam condições de estabilidade social e política indispensáveis à retomada do desenvolvimento a médio e longo prazos. Entretanto obstáculos importantes permanecem no rumo do crescimento com estabilidade e justiça social. Para superá-los, temos dedicado o melhor de nossos esforços a três objetivos primordiais: 1) realizar as reformas constitucionais necessárias à reconstrução do Estado brasileiro; 2) afirmar um novo padrão de investimentos na economia, mediante maior participação da área privada nos serviços públicos; 3) renovar práticas, concepções e prioridades da ação do governo na área social.
A curto prazo, a consolidação da estabilidade da moeda proporcionou um rumo bem definido para o desenvolvimento. Em 1995 a economia continuou crescendo, a taxa de investimento subiu cerca de 2 pontos percentuais do PIB, e o consumo de alimentos básicos e bens duráveis expandiu-se consideravelmente. A renda dos setores mais pobres cresceu bem acima da média nacional. A inflação continuou declinando.
Esse declínio da inflação apresenta características que reforçam a expectativa de estabilidade a longo prazo: já se observa uma acentuada convergência nos diferentes índices de preços, diminuindo a disparidade responsável por médias mensais ainda relativamente elevadas durante o ano de 1995. Além disso, enfraqueceu-se o caráter microinercial da inflação, pois as variações de preços, ocorridas em alguns segmentos produtivos em determinados meses, não se propagaram para os meses seguintes, voltando a taxa de inflação mensal a cair. Em terceiro lugar, o próprio mercado de trabalho está se flexibilizando, mediante entendimentos diretos entre empregadores e trabalhadores, com vistas a favorecer o emprego e a produtividade.
Paralelamente, houve um crescimento significativo dos investimentos produtivos estrangeiros no país, que superaram US$ 3 bilhões em 1995. Além disso, em função do novo regime automotriz adotado pelo Poder Executivo, anuncia-se um novo ciclo de investimentos nessa área, num montante superior a R$ 12 bilhões até o final da década. A crise financeira da agricultura, provocada por uma conjugação de produção crescente, preços relativos em declínio e juros excessivamente altos, foi equacionada mediante a securitização da dívida agrícola, que alcançou R$ 7 bilhões, propiciando maiores condições futuras de recuperação do setor.
Um fator fundamental para estimular a retomada dos investimentos decorre diretamente da alteração dos dispositivos da Constituição sobre a Ordem Econômica, principal conquista política de meu governo em 1995, e para a qual a contribuição do Congresso foi essencial. Daqui em diante, serão permitidos investimentos privados nos setores de petróleo e telecomunicações, bem como investimentos estrangeiros na área de energia elétrica e mineração. Eliminou-se, também, o tratamento diferenciado imposto ao capital estrangeiro.
A aprovação da Lei de Concessões, que tive o privilégio de sancionar como chefe do Executivo, tendo antes apresentado, no Senado, o projeto de lei original, estabeleceu as bases legais para a atuação da iniciativa privada na prestação de serviços públicos. Foi o principal fato na área da desestatização no ano passado, proporcionando, sobretudo na área elétrica, novos investimentos e a conclusão de empreendimentos -viabilizada mediante concessões- num total superior a R$ 2 bilhões.
Expressivos, também, foram os avanços na privatização. Sua importância, do ponto de vista econômico, deriva essencialmente de três fatores. O primeiro é a possibilidade de empregar os recursos provenientes da venda de empresas estatais para: a) abater a dívida pública, economizando os juros gerados por essa dívida; e b) estimular mais privatizações, inclusive nos Estados. O segundo é a economia da capacidade de gestão do Estado, para concentrá-la nas funções propriamente públicas, tais como educação, saúde, justiça, segurança, ciência e tecnologia. O terceiro consiste na possibilidade de fortalecer empresas privatizadas, tanto do ponto de vista gerencial como das fontes de financiamento para sua expansão.
Até agora a privatização avançou, especialmente, nas atividades mais tipicamente empresariais, como a petroquímica e a indústria do aço. Nessas áreas, o avanço no processo de preparação da venda da Vale do Rio Doce, que deverá estar concluído no primeiro semestre deste ano, foi o fato mais significativo. Além disso, foram dados passos decisivos para iniciar a privatização na área, muito mais complexa, de serviços públicos. No setor elétrico, além da venda da Escelsa e das concessões já mencionadas, os processos de divisão ou fusão, necessários para aumentar o valor de venda das empresas permitirão o avanço da desestatização no decorrer de 1996. Na área de transportes tiveram início licitações para concessões de rodovias federais à exploração pela iniciativa privada e prevê-se que, dos 15 mil km passíveis de concessão, mais da metade será objeto de licitação no decorrer deste ano. A privatização da malha ferroviária da RFFSA, de 22 mil km, avançará consideravelmente em 1996.
Esse esforço não se limitou ao âmbito federal. Foi também importante a cooperação entre o BNDES e os Estados, mediante financiamentos associados à compra de debêntures ou ações de empresas estaduais a serem empregados futuramente em privatização. A Caixa Econômica Federal está preparando procedimentos análogos junto aos municípios.
Tudo isso exigiu um esforço de remodelação da gestão governamental e de reforma do Estado. A nova estrutura do Executivo compreende, em sua cúpula, o Conselho de Governo, composto pelo presidente da República e pelos ministros de Estado, onde se examinam as grandes diretrizes e se tomam as decisões estratégicas da ação governamental. Foram criadas as Câmaras do Conselho de Governo, com a função de coordenar as ações nos diferentes setores do Executivo.
As mudanças sensíveis, decorrentes do esforço de estabilização da economia e de modernização do Estado, não se limitaram ao plano interno. O país conquistou imagem de nação capaz de remover os obstáculos à estabilidade e ao crescimento e de afirmar-se pela clareza de seus objetivos e a confiabilidade quanto ao cumprimento de seus compromissos. Participamos também ativamente dos acontecimentos mais significativos do cenário internacional e prestamos importante contribuição em áreas essenciais, como o desarmamento, a manutenção da paz, o respeito aos direitos humanos, a proteção ambiental, o desenvolvimento econômico e o progresso social.
No mundo atual, para um país com as dimensões e o significado do Brasil, já não basta reagir aos fatores e eventos externos. É necessário tomar iniciativas. A mais importante foi a proposta que fiz de um novo quadro regulatório para o fluxo de capitais internacionais, de modo a proteger as economias nacionais contra a volatilidade desses capitais. A receptividade dessa proposta, seja no âmbito dos organismos financeiros internacionais, seja no âmbito do G-7, que reúne as principais economias, é uma prova a mais da credibilidade por nós conquistada.
Senhores membros do Congresso Nacional.
A consolidação definitiva do Real, bem como o cumprimento da agenda de modernização não são tarefa simples. Três obstáculos ainda desafiam a estabilidade econômica e política que hoje vivemos, e da qual a nação tanto se orgulha. São eles a permanência da cultura do déficit público, o atraso e o corporativismo.
O risco de volta da hiperinflação não pode ser definitivamente debelado enquanto prevalecer a tendência a tratar os orçamentos públicos como receptáculo de expectativas, e não como instrumento de opção realista entre alternativas igualmente legítimas, mas nem sempre viáveis ao mesmo tempo. A ela se soma a tendência a reivindicar simultaneamente aumento de gastos e diminuição de receitas até hoje existente no nosso meio político. Outra, ainda, consiste em transferir para o Estado responsabilidades e custos que, claramente, devem ser assumidos por grupos específicos, e não por toda a sociedade.
A conta a pagar pela sociedade brasileira devido ao atraso também é elevada. Atraso, em primeiro lugar, do Estado, que se tornou pesado, caro e ineficiente em muitos setores. Diante dos novos desafios de uma economia crescentemente internacionalizada, o Estado ainda esbarra em dificuldades para diagnosticar as necessidades do país, para executar os projetos que adota e para fiscalizar, de modo eficiente, tanto o que executa diretamente, como o que transfere para a iniciativa privada.
Atraso, também, das empresas, que se habituaram, muitas vezes, a atuar em um mundo artificial onde se protegiam da competição pela excessiva regulamentação dos mercados e pela ampla indexação de preços. Nesse longo período de fechamento do mercado nacional e de inflação alta com indexação, a velocidade do reajuste de preços e os investimentos na esfera financeira se tornaram os principais instrumentos de ação empresarial, em detrimento da revisão de custos, da renovação dos métodos de gestão e do investimento produtivo.
O atraso é também social. Grandes disparidades ainda subsistem entre setores da população. Com baixo nível de instrução, formação técnica deficiente, mesmo uma parte da população que se encontra acima dos níveis de pobreza está despreparada para um mercado de trabalho que deverá tornar-se cada vez mais exigente para poder competir em níveis de igualdade numa economia globalizada.
O terceiro grande obstáculo à consolidação do Real e à sustentação do crescimento é o corporativismo. Ele não consiste apenas na busca da situação de interesses particulares, que é legítima em sociedades livres como a nossa, mas também em buscar soluções em que o interesse público e geral é subordinado ao interesse privado e de um grupo particular. Seja nas empresas, nas organizações da sociedade civil em geral, ou na máquina do Estado, uma mentalidade corporativa está permanentemente moldando as normas das instituições para colocá-las a serviço de seus membros em detrimento das finalidades para que foram criadas. No âmbito do Estado, especialmente, o corporativismo tem sido um poderoso fator de ineficiência e altos custos.
Só é possível enfrentar esses obstáculos mediante reformas que possibilitem, em última análise, o aumento de poupança pública e reforcem os incentivos ao setor privado, ao mesmo tempo em que eliminem o excesso de regulamentação do mercado de trabalho, reduzindo custos de contratação e manutenção do empregado, tudo isso resultando na geração de novos postos de trabalho. Essas reformas são indispensáveis à construção de um Estado moderno e eficiente. Uma reforma efetiva do Estado lhe permitirá exercer seu papel fundamental na regulação da economia e na garantia das condições estruturais de desenvolvimento, de modo que o mercado responda de forma mais efetiva às demandas de crescimento do país. Permitirá, também, que o Estado desempenhe com mais eficiência seu papel na distribuição mais justa do produto desse crescimento, de modo que as pessoas melhorem seu padrão de vida, mediante uma inserção mais adequada no processo produtivo.
A elas estarão associadas diretrizes necessárias à redução dos desequilíbrios espaciais e sociais. A diminuição das disparidades entre as pessoas constitui um compromisso deste governo. Mas as disparidades no seio da população refletem, em parte, disparidades no crescimento e na modernização das regiões. Por isso, a estratégia governamental deve visar a ambos os objetivos simultaneamente. Criação de novas oportunidades, redução de custos, aproveitamento das potencialidades econômicas, melhoria da infra-estrutura, fortalecimento da educação básica e técnica que, em última análise, proporcionam a melhoria das condições gerais de vida no campo e na cidade terão um tratamento regional específico.
O Programa Comunidade Solidária é peça fundamental dessa ação. Suas prioridades se identificam com as das principais áreas de atuação do governo no campo social. Parte importante de sua estratégia é a transformação nos métodos tradicionais de gerenciamento dos programas sociais, por um lado, multiplicando as parcerias entre o setor público e a iniciativa particular e, por outro lado, envolvendo todos os setores e órgãos governamentais na realização dos objetivos estabelecidos e evitando, com isso, a perpetuação de órgãos especializados e voltados exclusivamente para atender à população mais pobre.
Finalmente, persistiremos na busca da modernização do setor produtivo e do aumento da nossa capacidade de competir internacionalmente. Para tanto contribuirá, de forma decisiva, a mudança no perfil de investimentos na economia, mediante maior participação do setor privado, nacional e estrangeiro, nas atividades que hoje estão com o Estado. Com esse objetivo serão aperfeiçoadas as políticas de abertura comercial, desregulamentação, garantia da concorrência e defesa do consumidor. Paralelamente, serão aprimorados os mecanismos de defesa da produção e do emprego, usualmente adotados em outros países, especialmente nos casos de práticas desleais de comércio.
Esse conjunto de ações constitui um requisito às políticas setoriais do governo contidas nesta mensagem, que ora trago à consideração dos senhores membros do Congresso Nacional. Não estão aqui como promessas, mas como compromisso e expectativa. Compromisso de meu governo com as diretrizes expostas. Compromisso com uma nova mentalidade de governo, pautada pela seriedade do diagnóstico, pelo realismo dos programas e pelo empenho em sua realização. Compromisso com a estabilidade e com a retomada do crescimento. Compromisso com a prosperidade e a justiça social.
Temos a expectativa de manter e aumentar a qualidade da cooperação que prevaleceu, durante toda a sessão legislativa que vem encerrar-se, entre Executivo e Legislativo, marcada pelo respeito mútuo e pela paixão comum pelo interesse público. Expectativa, também, de sempre corresponder ao mandato que a nação brasileira nos concedeu.
Brasília, 15 de fevereiro de 1996
Fernando Henrique Cardoso
Presidente da República

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