São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 1996
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O papa João Paulo faz opção pelos turistas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Manda a boa educação que numa discussão sobre tema sério e de interesse geral não se usem argumentos pessoais, "ad hominem". Estou citando a expressão latina porque, à beira de usar argumentos pessoais ao comentar uma decisão do papa, achei que o emprego da língua do Vaticano tornava menos desrespeitoso o que tenho a dizer, e que é que João Paulo 2º já devia ter pedido o boné, perdão, o solidéu. Merece sua aposentadoria, ou seu afastamento, como seu amigo e compatriota Lech Walesa. O papa Wojtyla -frágil e enfermo em sua velhice- está declarando guerra à Teologia da Libertação, tal como Walesa a declarava ao comunismo. O resultado, no caso Walesa, é que perdeu a eleição para um comunista, que é a coisa mais fora de moda que hoje existe. Segundo Fidel Castro só restam no mundo dois comunistas, ele próprio e Oscar Niemeyer. Sua santidade parece não ver que, condenando a Teologia da Libertação, lhe renova enormemente a importância. Está regando planta que há muito não via chuva. E, o que é pior, dá prova daquela velha arrogância de Roma quando tentava conter a "Teologia da Cruz" e do sofrimento, defendida por Lutero, contra a "Teologia da Glória", que era a de Roma. Como a Teologia da Libertação (de um grande homem como Pedro Casaldáliga, bispo exemplar, de Frei Betto e de Leonardo Boff) luta pelos pobres e desvalidos, e Roma, no momento, só parece preocupada com a saúde do papa, a impressão que se tem é de que Roma quer criar de novo, em tom meio farsesco, a ruptura protestante. A Teologia da Libertação passa a ser o cristianismo dos pobres e o Vaticano o dos turistas. Ponto Final.
Eu estava, para dizer a verdade, pretendendo escrever sobre Nietzsche e sobre a capacidade que teve este nosso século de transformar graves símbolos em histórias em quadrinhos ou cinema "light". Nietzsche foi, provavelmente, quem mais revolveu e destruiu idéias e crendices do século. Aliás, ele nem entrou no século, já que morreu em 1900 e passou os últimos onze anos da vida doido varrido.
Dele ficaram sombrios e bigodudos retratos que dão a impressão de que ele nunca achou graça nenhuma na vida. Foi o primeiro homem a dizer, em meados do século passado, a frase que é sempre citada quando se fala nele: "Deus morreu". É claro que muitas pessoas tinham dito, antes dele, "não acredito em Deus", e mesmo "Deus não existe". Mas Nietzsche falou como quem diz que dois e dois são quatro. Ele se apoiava, sem dúvida, nas descobertas científicas do seu tempo, como as de Darwin, mas elas apenas sublinhavam sua desconversão total: "Deus morreu". E Nietzsche já tinha um substituto: o super-homem em que o homem se transformaria. Não havia orfandade. O homem era seu próprio criador.
Deu-se mal. Ele, que tanto criticava os alemães e acabou rompendo com Wagner por considerá-lo subserviente à idéia do alemão como raça superior, acabou desfigurado e posto, anos depois de morto, a serviço de um falso super-homem ariano que era o contrário do que pregava. Aliás, deu-se mal na vida em geral. Sua única paixão foi por uma mulher sedutora, amante do poeta Rilke, namorada de Freud. Lou Salomé se chamava a ímpia que não deu atenção ao pobre Nietzsche e acabou se casando com um obscuro orientalista chamado Andreas. A pouca ou nenhuma atenção que Friedrich Nietzsche despertou enquanto vivo -nas mulheres como na maioria dos filósofos seus contemporâneos- e o esforço mental que fez para criar, a despeito de tudo, sua obra, de uma vitalidade que até hoje nos abala e nos comove, levou-o finalmente ao hospício. Deus castiga, dirão os últimos crentes.
Comprei outro dia um livrinho francês, de textos de Nietzsche, que me seduziu pela capa, intitulado "Escritos Autobiográficos, 1856-1859". Nietzsche começa seus diários evocando o próprio nascimento em 1844 numa aldeia da Prússia em que o pai era pastor luterano e é curioso ver como o futuro iconoclasta era humilde, religioso, contente. E sonhador, em termos de embrionária poesia e música. A lembrança me fez evocar a visita que fiz, anos atrás, em São Paulo, ao meu amigo e musicólogo Ênio Squeff, que pôs na vitrola e me pediu depois que adivinhasse quem seria o autor das sonatas e outras composições que acabávamos de ouvir. Arrisquei um nome qualquer, dentro dos meus limitados conhecimentos, mas creio que poucos saberiam dizer que o autor era o jovem Nietzsche, que além das obrigações de estudante, da composição do diário, da devoção religiosa, aprendia e compunha uma música doce e romântica.
Em Leipzig, quando fazia as duas grandes descobertas da sua vida cultural -Schopenhauer e Wagner- Nietzsche começou a prestar serviço militar na cavalaria. Levou um tombo do cavalo que o obrigou a deixar o treinamento militar. Mergulhou cada vez mais fundo nos estudos e se transformou no filósofo mais influente dos tempos modernos.
Mas sem sorte continuou. Alemães e americanos, depois de lerem seu "Assim Falava Zaratustra", em lugar de procurarem montar o super-homem ali planejado, passaram a usá-lo (os alemães) como símbolo dos nazistas, ou (os americanos) como herói cinematográfico para as crianças e os adultos acriançados que somos todos nós. Hollywood arranjou, para super-homem, um herói bonitão, Christopher Reeve. Da película, guardei um momento em que ele quase fazia a gente pensar em Nietzsche e na teoria do Eterno Retorno: é quando, contrariado por algo que aconteceu mas não devia ter acontecido, Superman se afasta do globo terrestre, detém seu movimento circular no espaço, e o obriga a voltar atrás, para cancelar o que não devia ter ocorrido. Reeve, coitado, outro dia caiu do cavalo, como Nietzsche durante o serviço militar, e ficou pavorosamente aleijado.
Hollywood, aliás, adora transformar graves símbolos, como o do "bermensch" de Nietzsche, em saudáveis atletas inofensivos. Vale talvez lembrar, para encerrar o assunto, que morreu há dias, em Los Angeles, Jerry Siegel, que foi quem primeiro meteu o super-homem em quadrinhos. Inventou o bocó do jornalista Clark Kent, a história, em suma, que acabou rendendo milhões e milhões de dólares aos produtores. Mas Siegel e seu companheiro Shuster venderam, em 1938, todos os direitos autorais do Superman, à empresa DC Comics, por 130 dólares.
Como diria minha avó, quem mexe com coisas como Nietzsche e a morte de Deus, Deus castiga.
Touradas
Agradeço àqueles que, ao lerem meu artigo sobre touradas, me enviaram cópias do ensaio "Última Corrida de Touros em Salvaterra" e que foram, além do meu amigo e colega Luís Edgar de Andrade, Dulce Barros Peixoto, Walter Rollemberg Leite e Celso Toffani.

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