São Paulo, sábado, 17 de fevereiro de 1996 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
O papa João Paulo faz opção pelos turistas
ANTONIO CALLADO
Eu estava, para dizer a verdade, pretendendo escrever sobre Nietzsche e sobre a capacidade que teve este nosso século de transformar graves símbolos em histórias em quadrinhos ou cinema "light". Nietzsche foi, provavelmente, quem mais revolveu e destruiu idéias e crendices do século. Aliás, ele nem entrou no século, já que morreu em 1900 e passou os últimos onze anos da vida doido varrido. Dele ficaram sombrios e bigodudos retratos que dão a impressão de que ele nunca achou graça nenhuma na vida. Foi o primeiro homem a dizer, em meados do século passado, a frase que é sempre citada quando se fala nele: "Deus morreu". É claro que muitas pessoas tinham dito, antes dele, "não acredito em Deus", e mesmo "Deus não existe". Mas Nietzsche falou como quem diz que dois e dois são quatro. Ele se apoiava, sem dúvida, nas descobertas científicas do seu tempo, como as de Darwin, mas elas apenas sublinhavam sua desconversão total: "Deus morreu". E Nietzsche já tinha um substituto: o super-homem em que o homem se transformaria. Não havia orfandade. O homem era seu próprio criador. Deu-se mal. Ele, que tanto criticava os alemães e acabou rompendo com Wagner por considerá-lo subserviente à idéia do alemão como raça superior, acabou desfigurado e posto, anos depois de morto, a serviço de um falso super-homem ariano que era o contrário do que pregava. Aliás, deu-se mal na vida em geral. Sua única paixão foi por uma mulher sedutora, amante do poeta Rilke, namorada de Freud. Lou Salomé se chamava a ímpia que não deu atenção ao pobre Nietzsche e acabou se casando com um obscuro orientalista chamado Andreas. A pouca ou nenhuma atenção que Friedrich Nietzsche despertou enquanto vivo -nas mulheres como na maioria dos filósofos seus contemporâneos- e o esforço mental que fez para criar, a despeito de tudo, sua obra, de uma vitalidade que até hoje nos abala e nos comove, levou-o finalmente ao hospício. Deus castiga, dirão os últimos crentes. Comprei outro dia um livrinho francês, de textos de Nietzsche, que me seduziu pela capa, intitulado "Escritos Autobiográficos, 1856-1859". Nietzsche começa seus diários evocando o próprio nascimento em 1844 numa aldeia da Prússia em que o pai era pastor luterano e é curioso ver como o futuro iconoclasta era humilde, religioso, contente. E sonhador, em termos de embrionária poesia e música. A lembrança me fez evocar a visita que fiz, anos atrás, em São Paulo, ao meu amigo e musicólogo Ênio Squeff, que pôs na vitrola e me pediu depois que adivinhasse quem seria o autor das sonatas e outras composições que acabávamos de ouvir. Arrisquei um nome qualquer, dentro dos meus limitados conhecimentos, mas creio que poucos saberiam dizer que o autor era o jovem Nietzsche, que além das obrigações de estudante, da composição do diário, da devoção religiosa, aprendia e compunha uma música doce e romântica. Em Leipzig, quando fazia as duas grandes descobertas da sua vida cultural -Schopenhauer e Wagner- Nietzsche começou a prestar serviço militar na cavalaria. Levou um tombo do cavalo que o obrigou a deixar o treinamento militar. Mergulhou cada vez mais fundo nos estudos e se transformou no filósofo mais influente dos tempos modernos. Mas sem sorte continuou. Alemães e americanos, depois de lerem seu "Assim Falava Zaratustra", em lugar de procurarem montar o super-homem ali planejado, passaram a usá-lo (os alemães) como símbolo dos nazistas, ou (os americanos) como herói cinematográfico para as crianças e os adultos acriançados que somos todos nós. Hollywood arranjou, para super-homem, um herói bonitão, Christopher Reeve. Da película, guardei um momento em que ele quase fazia a gente pensar em Nietzsche e na teoria do Eterno Retorno: é quando, contrariado por algo que aconteceu mas não devia ter acontecido, Superman se afasta do globo terrestre, detém seu movimento circular no espaço, e o obriga a voltar atrás, para cancelar o que não devia ter ocorrido. Reeve, coitado, outro dia caiu do cavalo, como Nietzsche durante o serviço militar, e ficou pavorosamente aleijado. Hollywood, aliás, adora transformar graves símbolos, como o do "bermensch" de Nietzsche, em saudáveis atletas inofensivos. Vale talvez lembrar, para encerrar o assunto, que morreu há dias, em Los Angeles, Jerry Siegel, que foi quem primeiro meteu o super-homem em quadrinhos. Inventou o bocó do jornalista Clark Kent, a história, em suma, que acabou rendendo milhões e milhões de dólares aos produtores. Mas Siegel e seu companheiro Shuster venderam, em 1938, todos os direitos autorais do Superman, à empresa DC Comics, por 130 dólares. Como diria minha avó, quem mexe com coisas como Nietzsche e a morte de Deus, Deus castiga. Touradas Agradeço àqueles que, ao lerem meu artigo sobre touradas, me enviaram cópias do ensaio "Última Corrida de Touros em Salvaterra" e que foram, além do meu amigo e colega Luís Edgar de Andrade, Dulce Barros Peixoto, Walter Rollemberg Leite e Celso Toffani. Texto Anterior: Olodum revê sua história em Montreux Próximo Texto: João Cabral é tema de nova publicação semestral Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |