São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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País vive hora do espanto

ALOYSIO BIONDI

Juristas de diferentes pensamentos políticos, como Ives Gandra Martins, Modesto Carvalhosa e Saulo Ramos, têm apontado, em artigos nesta Folha, sucessivos atos de autoritarismo, de desrespeito às leis, mesmo, do governo FHC.
O acordo entre sindicalistas e empresários, a pretexto de reduzir encargos trabalhistas, mostra que esse autoritarismo está indo longe demais. Já é uma ameaça à democracia.
Nas ditaduras, os grupos que detêm o poder podem exercê-lo de forma absoluta. Com leis (éditos) impostas de acordo com sua vontade e interesses, podem cometer abusos "legalizados", como aumentar brutalmente os impostos, confiscar casas, doar bens públicos a grupos amigos do poder...
Inversamente, as democracias se baseiam em leis criadas para defender os direitos dos os cidadãos, e capazes de garantir que os objetivos da sociedade como um todo não serão prejudicados por pessoas ou grupos.
Por tudo isso, é um grave equívoco discutir detalhes do acordo, como vem ocorrendo. Desde o início, a única questão que importa, o que é essencial no episódio, é que um grupo de cidadãos anunciou publicamente a decisão de não cumprir as leis, ou mesmo de desrespeitar a própria Constituição. Não existe Estado de Direito, volta-se à barbárie, quando cada qual faz suas próprias leis, pensando em seus "direitos".
Para que a sociedade funcione, é obrigação constitucional dos governantes fiscalizar o cumprimento das leis, punindo os infratores. Incrivelmente, o presidente da República, que em seu juramento de posse assumiu o compromisso de respeitar e fazer respeitar a Constituição, apoiou o acordo.
Quando os governantes estimulam o descumprimento da lei, a democracia sofre um abalo. O Brasil vive a hora do espanto: fantasmas da ditadura estão de volta. As tímidas reações ao acordo mostra que democratas dormem a sono alto.
Se o próprio governo tivesse proposto o desrespeito à Constituição, poderia haver reações. Há indícios, concretos, de que Brasília usou a "mão do gato" para evitá-las. A estratégia foi confiar aos próprios trabalhadores, isto é, suas lideranças, o encaminhamento do acordo.
A pista
Em setembro do ano passado, uma portaria do Ministério do Trabalho abriu caminho para a ilegalidade. Ela determinou que a fiscalização do ministério não "vetasse" cláusulas de acordos trabalhistas que desrespeitassem a lei. Uma portaria duplamente reveladora e ilegal: por desrespeitar a lei, ela própria, e por mandar os fiscais desrespeitarem a lei.
Um ponto, habilmente explorado, confunde a opinião pública: afinal, os trabalhadores não podem abrir mão de "direitos" que são seus, em troca de mais empregos? Mais uma vez, a resposta: uma sociedade não pode funcionar se cada grupo de cidadãos fizer suas "leis".
O coletivo
Ninguém gosta de pagar impostos. Mas os homens se organizam em sociedades, e elas precisam de impostos para oferecer serviços a todos.
A aberração
Apenas um exemplo, dentre tantos, das aberrações do acordo: ele reduz pela metade as contribuições das empresas à Previdência. As contribuições ao INSS não são um "direito" do trabalhador, e sim uma necessidade da sociedade, para a manutenção da Previdência. Se ela ficar sem recursos, milhões de cidadãos sofrerão. Por isso, a lei exige a contribuição. Assim funcionam as nações.

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