São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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Explosão de formas de vida no Cambriano pode ter sido casual

JOSÉ REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

No começo do período Cambriano, há 500 milhões de anos, ocorreu verdadeira explosão de pequenos e estranhos fósseis.
Os paleontólogos em geral explicaram esse fato pela abertura de muitos nichos ecológicos novos (espaços a que se adaptam espécies ou indivíduos, que ali desenvolvem seus comportamentos).
Esses novos nichos teriam surgido quando os animais ganharam pela primeira vez grandes áreas de tecidos duros.
O chamado xisto ou folhelho (rocha fóssil laminada e estratificada) de Burgess, na Colúmbia Britânica (Costa Oeste do Canadá) é representante típico daquela época, e muitas de suas formas foram reconstituídas por Derek E. G. Briggs, da Universidade de Bristol, e seus colegas Harry B. Whittington e Simon Conway Morris, da Universidade de Cambridge.
Vários dos fósseis reconstituídos não pareceram pertencer, ao primeiro exame, aos filos conhecidos (grandes ramificações do reino animal) e, por isso, foram colocados em filos novos.
Pelo menos oito formas do folhelho de Burgess não correspondem a nenhum dos filos reconhecidos, segundo escreve Stephen Jay Gould em seu livro "Wonderful Life", já traduzido em português ("Vida Maravilhosa", Companhia das Letras, 1992). Entre esses estranhos fósseis, ele incluiu Hallucigenia, Wiwaxia, Amiskwia, Anomalocaris e outros.
Ao mesmo tempo que contou a história da peculiar fauna do xisto, Gould, que é paleontólogo da Universidade Harvard e excelente divulgador da ciência, atacou a teoria convencional que procura explicar a explosão cambriana.
Alega que devem ter atuado processos evolucionários especiais na criação de tamanha variedade de formas e vai além, para espanto dos ortodoxos: sustenta que o acaso, em vez da aptidão genética, foi o principal agente na seleção dos seres que, entre os fósseis registrados, deveriam povoar a Terra com sua descendência.
A grande diversidade de formas raras teria desaparecido com o tempo, parcialmente, de maneira que os mares atuais conteriam muito mais espécies baseadas em menos planos anatômicos.
Após a explosão cambriana, diz ele, "a história da vida é uma história de maciça remoção seguida por diferenciação dentro de uns poucos estoques sobreviventes".
Outros biólogos não se conformaram com a idéia de Gould sobre a necessidade de invocar outras forças além da evolução convencional para explicar a diversidade dos animais cambrianos.
Esse argumento se reforçou quando exemplos capitais da diversidade de filos do Cambriano começaram a desaparecer com a descoberta de que vários dos fósseis tidos como isolados, sem relação com os demais filos, de fato pertencem a filos já conhecidos.
Assim, Nicholas J. Butterfield, da Harvard, provou que Wiwaxia pode ser classificado como verme poliqueta, grupo bem conhecido com mais de 5.000 espécies vivas.
A Hallucigenia, revelaram L. Remskoeld e Hou Xianguang, parecera tão estranha quando descrita simplesmente porque fora reconstituída ao contrário. Em vez de caminhar com pernas que são espinhos e ter no dorso duas fileiras de tentáculos, é animal de pernas tentaculares e espinhos no dorso, cabendo possivelmente no filo dos onicóforos, que consta de qualquer manual de zoologia.
Gould acreditava que Amiskwia não possuísse formas relacionadas, justificando pois um filo só para si, mas hoje sabemos que se trata provavelmente de um verme quetognata, segundo Butterfield. E o predador Anomalocaris encaixa-se muito bem em outro grupo fóssil recém-descoberto.
A tudo isso, Gould responde que a redução da diversidade dos filos implica necessariamente a maior diversidade dentro desses.
A estranheza taxonômica (classificatória) -nesse ponto ele recua um pouquinho- seria por si mesma irrelevante para avaliar a diversidade. Ninguém, todavia, nega que o Cambriano foi período de rápida mudança.
Quanto ao debate, permanece a questão: bastaria essa rápida diversificação para justificar o apelo a forças diferentes das que agem na evolução convencional?
Quaisquer que sejam as conclusões, uma coisa é indiscutível: vale a pena ler o livro de Gould porque seu estilo é delicioso, e o quadro que pinta dos fósseis do folhelho de Burgess compensa bem os enganos que contém e só apareceram depois de escrita a obra.

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