São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os guizos falsos da alegria

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - "No grande teatro da vida vão levar mais uma vez a revista colossal: pierrô, arlequim, colombina vão a preços populares repetir o Carnaval". A marchinha cantada por Mário Reis anunciava que estava próximo aquilo que os jornais xingavam de "tríduo momesco". O pai não achava os preços tão populares assim, mas trazia os rolos de serpentina, os sacos de confete, as caixas de lança-perfume.
Os garotos vizinhos, em sua maioria, apareciam com os Rodos, metálicos ou não, a Rhodia já entrava forte no mercado. Eu preferia o Rigoletto, com dois "tês" mesmo, tinha a cara do bufão de Hugo/Verdi no rótulo, uma cara coberta pelos guizos que o Orestes Barbosa, em canção famosa, chamou de "guizos falsos da alegria".
O pai cismava com um lança-perfume chamado Van, eu era o único menino da rua, do bairro, talvez da cidade e do mundo que não tinha um Rodo ou um Rigoletto, mas um Van.
Economizava os três vidros que recebia, um para cada dia do tríduo, que para mim se limitava às serpentinas que o pai jogava nos fios da Light, fazendo de nossa casa uma espécie de bolo colorido, o pessoal que passava nos bondes espiava e louvava.
Eu zelava pelos meus lança-perfumes, não deixava ninguém mexer, nem emprestava a ninguém, todos queriam saber como era o cheiro do Van. Foi o único bem que consegui economizar ao longo da vida. No último dia, tinha dois vidros cheios e um pela metade.
Quando a tarde caía e os blocos de sujos sumiam, começava o desfile das fantasias de verdade. Arlequins e colombinas anunciadas na marchinha vinham para as ruas e eu gostava dos pierrôs, com a cara branca, o bandolim prateado.
Jogava em todos a metade do lança-perfume que me sobrara. E guardava os dois inteiros para a hora em que as ruas ficavam vazias, vazias e iluminadas, pierrôs, arlequins e colombinas, todos desapareciam, só eu ficava na rua e no mundo.
Então gastava o meu tesouro, entontecido de tanto perfume -um perfume do qual não lembro o cheiro nem o gosto, que tinha o tamanho e a tristeza de uma festa que acaba.

Texto Anterior: Só se pensa naquilo
Próximo Texto: Empregar é necessário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.