São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 1996
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Lutero na teologia latino-americana

WALTER ALTMANN

Celebram-se hoje os 450 anos da morte do reformador Martinho Lutero. Melhor do que comemorar é refletir sobre sua importância em nosso contexto.
É notória a influência de Lutero no cenário eclesial. Há, naturalmente, aquelas igrejas que guardam a lembrança de Lutero já ao se intitularem de luteranas -por contingência histórica, embora contra a vontade expressa do Reformador.
Mas também as demais denominações protestantes -inclusive, em larga medida, o pentecostalismo- reconhecem a obra e a redescoberta evangélica de Lutero em sua própria origem histórica. São patrimônio comum, por exemplo, conceitos como "justificação pela fé e pela graça de Deus" (em contraposição a uma salvação por mérito humano), "somente pela Escritura" (em antagonismo ao conhecimento advindo de tradições humanas) e "sacerdócio universal dos crentes" (caracterizando o acesso a Deus sem a intermediação da hierarquia eclesiástica).
Menos reconhecida é a influência de Lutero no pensamento teológico latino-americano, em particular na renovação que levou a uma Teologia da Libertação. Obviamente seria simplista tentar estabelecer uma identificação entre a teologia de Lutero e a teologia latino-americana da libertação.
Passaram-se cinco séculos, a estrutura social e o contexto histórico são outros. Contudo seria expressão de grave ignorância declará-las como incompatíveis. Há um amplo leque de convergências, embora também dissonâncias. Nesses limites podemos falar de uma influência remota da teologia de Lutero na teologia latino-americana.
1) O próprio Vaticano 2º acolheu conceitos que remontam claramente, em alto grau, a Lutero: a definição da igreja como povo de Deus, a renovação litúrgica com adoção do vernáculo e ênfase na pregação, a descrição das Escrituras como palavra de Deus e como instância normativa. Teólogos latino-americanos também têm assumido conceitos tipicamente luteranos, como "somente a Escritura", "simultaneamente justo e pecador" e "sacerdócio universal".
2) Há uma série de analogias evidentes. A Teologia da Libertação enfatizou as comunidades eclesiais de base (CEBs), assim como a Reforma esteve centrada em congregações locais. Ademais, assim como na Reforma de Lutero, também em nosso continente há um impressionante reencontro com as Escrituras. Um amplo movimento de releitura da Bíblia desenvolve-se entre camadas populares.
Uma analogia adicional: Lutero adotou um estilo coloquial em sua pregação e, em sua monumental tradução da Bíblia, adotou uma linguagem tomada da realidade do povo. Pretendeu e conseguiu captar a língua do povo, a fala das crianças nas ruas, dos homens nos mercados e das mulheres nas casas... Já na teologia da América Latina usam-se termos como "colocar a Bíblia nas mãos do povo".
3) Há, ademais, semelhanças notáveis. Por exemplo, em seu "Catecismo Maior", Lutero, ao explanar o primeiro mandamento, contrapôs "Deus" e os "ídolos". Esse é precisamente o antagonismo fundamental adotado por teólogos latino-americanos quando falam acerca de Deus em nossa realidade, denunciando a lógica perversa das políticas econômicas neoliberais.
É impressionante o paralelo de que já Lutero identificava Mamon (as riquezas -o capital) como "o ídolo mais frequente na terra".
Outra semelhança é que tanto a teologia de Lutero quanto a Teologia da Libertação adotaram uma espiritualidade em que a cruz de Cristo é assumida como presença solidária e salvífica de Cristo e como fonte confortadora de perseverança da fé em face das injustiças ou das aflições no processo de libertação.
Finalmente Lutero advogou, com insistência, em favor da libertação do âmbito secular de qualquer espécie de tutela eclesiástica, bem como pelo fim dos privilégios materiais da instituição igreja. De sua parte a teologia latino-americana afastou-se radicalmente do modelo de cristandade, com sua viciosa aliança de trono e altar, igreja e Estado.
4) Há, naturalmente, também dissonâncias entre Lutero e a Teologia da Libertação. Em relação às fronteiras da igreja, a teologia de Lutero descreveu a igreja como a comunidade sob a palavra de Deus, enquanto a Teologia da Libertação tem a propensão de alargar as fronteiras da igreja contando com a presença de Deus, de Jesus Cristo e do Espírito Santo entre pessoas, povos e culturas não-cristãs.
Quanto ao conceito de história, a teologia latino-americana tem enfatizado a existência de "uma só história" e que o processo de libertação se desenvolve no interior dessa única história. Assim a história humana adquire um caráter salvífico. Já para a teologia luterana, tem sido essencial preservar a distinção entre ação humana e ação salvífica de Deus, mantendo assim permanentemente um espírito crítico em relação a todo empreendimento na história.
No entanto, considerados os diferentes contextos históricos, essas diferenças não constituem antagonismo insuperável. Se Lutero enfatizou a liberdade da fé, sem esquecer que esta conduz inevitavelmente a obras de solidariedade e amor, a teologia latino-americana, inversamente, acentuou a prática da justiça, entendendo-a contudo como expressão de um compromisso arraigado na fé e por ela alimentado.

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