São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 1996
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A queda da bastilha

JAQUES WAGNER

Imbuída de um "fernandohenriquismo" galopante, para usar a expressão do ombudsman desta Folha, setores da imprensa dão a impressão de que querem ver a oposição produzindo cotidianas quedas da bastilha.
Essa atitude contrasta com o fato de que esses mesmos setores carregavam nas tintas quando cobriam as manifestações organizadas por sindicatos, durante o primeiro semestre do ano passado, problema que terminou sendo resolvido quando o presidente fez opção preferencial pelas viagens internacionais.
Também a justa greve dos petroleiros, que propiciou a Fernando Henrique Cardoso seus 15 minutos de glória, estrelando o papel de "Dama de Ferro" tropical, mereceu tratamento cruel da maior parte dos meios de comunicação.
Para agir dessa forma contraditória, gerando expectativas insurrecionais e combatendo simples greves, os meios de comunicação precisaram se esquecer de que até Fernando Collor obteve do Congresso, no seu primeiro ano de governo, tudo o que quis (o impeachment só veio no terceiro ano); que as matérias aprovadas por Fernando Henrique Cardoso no Congresso Nacional, como a quebra dos monopólios, tratavam de temas abstratos, distantes do dia-a-dia da população, e que a proposta original de reforma da Previdência Social já foi significativamente modificada, antes mesmo de chegar ao plenário.
A tentativa de criar o mito da inexistência de oposição não tem base na realidade e só se explica pelo fato de que há uma quase unanimidade da imprensa em torno do desastrado projeto neoliberal. Em todo caso não há por que esconder as dificuldades enfrentadas pela oposição. Na ausência de movimento social, a oposição parlamentar de esquerda pode ser transformar numa engrenagem girando no vazio.
Por outro lado, a expansão do desemprego e da miséria, frutos inevitáveis do projeto neoliberal, antes de ser um estímulo à retomada dos movimentos sociais, tende, pelo menos no curto prazo, a desestimular as saídas coletivas, na medida em que contribui para atomizar a sociedade.
Políticas cujos efeitos sociais são o aprofundamento da miséria, como é o caso do neoliberalismo, podem favorecer explosões pré-políticas ou guerras informais, como já ocorre em certas áreas do Brasil. A surpresa aqui corre por conta de que a maior parte dos trabalhadores não perdeu a calma e continua procurando saídas políticas para a crise, dentro de padrões democráticos, embora todos saibam que as elites neoliberais não morrem de amores pelos valores da liberdade e da democracia, o que faz com que saídas autoritárias sempre estejam na ordem do dia.
O governo FHC é previsível. Em apenas um ponto surpreendeu a oposição: sua capacidade de gerar escândalos. Nesse ponto a experiência mostrou que a oposição estava errada. O crédito que ela concedia ao antigo sociólogo foi sucessivamente questionado pelos fatos: vazamento de informações privilegiadas do Banco Central, caso Dallari, escândalo Sivam, escutas telefônicas, escândalo do Econômico, da pasta rosa, entre outros. Há quem diga que a revelação desses escândalos é fruto das brigas intestinas do governo e não fruto do trabalho da oposição.
Independentemente da disputa para saber quem teve essa ou aquela iniciativa, importa registrar que os escândalos em si testemunham contra o governo da mesma maneira que não custaria lembrar o papel de Pedro Collor no desencadeamento do escândalo PC.
A oposição não alimenta sonhos golpistas, mas exerce com aplicação seu papel. Ao longo do ano passado, resistiu à quebra dos monopólios, contribuiu ativamente para estabelecer o salário mínimo de R$ 100, sem cortes nos direitos previdenciários dos trabalhadores, participou ativamente da derrota da iniciativa sensata de taxar os inativos, denunciou sucessivas falcatruas no Sivam e tem dado sua contribuição para dificultar a tramitação e melhorar a proposta de reforma da Previdência e da administração.
Neste momento, a oposição, junto com outras forças políticas, resiste às tentativas de eliminar o Destaque para Verificação de Votação (DVS) do Regimento da Câmara dos Deputados; da mesma forma que se articula com vistas a coibir o uso e abuso das Medidas Provisórias por parte do Executivo, dentro da compreensão de que a manutenção das prerrogativas do Congresso e a manutenção de regras democráticas para seu funcionamento são essenciais para a defesa das liberdades públicas, e funciona como desestímulo a possíveis aventuras golpistas que nunca estão completamente ausentes das cabeças da direita deste continente.
Iniciativas como o lançamento do Memorial pela Reforma Agrária, antecedida pela opção do PT pelo comando da Comissão de Agricultura e Política Rural, contribuíram para o relançamento do debate sobre esta questão a nível nacional e constituem o orgulho da oposição. Hoje a reforma agrária está presente no debate, apesar do governo.
Mas essa não é a única questão em debate. Foi a oposição quem trouxe para dentro do Congresso Nacional novos temas que percorrem as ruas: a luta contra o preconceito e o racismo, por ocasião dos 300 anos da morte de Zumbi, e as questões de gênero expressas inclusive na aprovação de cota que garante a participação das mulheres nas listas partidárias de candidatos.
Finalmente, cabe lembrar que, sempre que julgou cabível, a oposição recorreu ao STF para arguir a inconstitucionalidade de iniciativas do governo.
Conseguiu, por esta via, eliminar a figura do árbitro nas negociações trabalhistas e, agora, despacho do ministro Celso de Mello aponta para o caráter inconstitucional da utilização de recursos públicos para a formação do fundo de garantia de depósitos bancários -embora o STF ainda não tenha se pronunciado definitivamente sobre a questão. Tudo isso permite concluir que se a bastilha de FHC ainda não caiu, ele ainda não transformou o Brasil numa grande Albânia liberal e unânime.

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