São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 1996
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'Diálogo' pós-carnavalesco trata do obsceno

MARIO SERGIO CORTELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vivemos, nestes dias, a ressaca pós-carnavalesca. Para muitos, chega ao fim o império da luxúria e da devassidão; para outros, agora é o momento do reino da nostalgia e da saudade do futuro.
Alguns, já um pouco enfastiados com as libações etílicas, procuram recompor-se da sensualidade transbordada. Outros, avessos talvez à explosão das genitálias desnudas -ofertadas por milhares de ladies Godivas pós-modernas-, regozijam-se com o término daquilo que entendem como o preâmbulo do apocalipse.
Carnaval, tempo de escândalos e prazeres? Entre seus despojos, ficam, ainda, as imagens do despudor público (o privado não) exibidas pelos jornais e pelas revistas e televisões.
Face ao derramamento pictórico desta fase, é provável que as palavras mais proferidas tenham sido, e continuem sendo, escandalosa, delícia, vergonha, indecente, gostoso, imoral. Parece até que o alerta feito por Jean-Jacques Rousseau no "Emílio", quando diz: "Quem cora já está culpado; a verdadeira inocência não tem vergonha de nada", não foi bem assimilado.
Estes são tempos de discutir, de novo, o recorrente tema do obsceno. E, conexo a ele, o impudico, o impuro, o indecoroso, o pecado, o lascivo, o libidinoso, o pornográfico e (por que não?) a culpa.
Há não muito, esses epítetos foram aplicados às exibições de Josephine Baker, aos lábios do Mick Jagger, aos balanços de Elvis Presley, ao esvoaçante vestido de Marilyn Monroe, às composições de Raul Seixas, à nudez telenovelesca, às letras de rap, às saias da Wanderléa, aos filmes de Pasolini (que costumava responder aos seus críticos dizendo que "pecar não é praticar o mal; o verdadeiro pecado é não fazer o bem") etc.
Toda vez que o debate sobre o obsceno se instala ou há intenção de censura ao que for considerado imoral, não são poucos os que argumentam que imoral é a pobreza, indecente é a fome, indecoroso é o salário-mínimo (que, como falava o saudoso cartunista Fortuna, não é nada, não é nada... não é nada!).
Não há como discordar desse viés, mas qual a natureza do obsceno? Pode-se defini-lo para além do campo econômico e político? Qual é o limite do lícito e do decente na literatura, na arte, na liberdade de expressão, na religião?
Teria hoje Júlio 2º ficado espantado com o resultado do trabalho de Michelangelo na Capela Sistina como ficou em 1512? E se olhasse o exterior de uma de nossas bancas de jornais, exclamaria ele (como Cícero nas "Catilinárias"): "O tempore! O mores!"?
Sócrates foi acusado de impiedade pública, Jesus de Nazaré foi denunciado pelo crime de escândalo, Galileu amargou uma reclusão em função de sua heliocêntrica proposta indecente e Darwin, prisioneiro de escrúpulos morais, reteve por muito tempo a divulgação de suas conclusões. Todos eles, de alguma maneira, foram obscenos para seu tempo. E hoje, o que é, de fato, obsceno?
É um pouco por esse "jardim das delícias" que vamos passear na próxima terça-feira (uma semana após a carnavalização!), no primeiro evento da série 1996 dos "Diálogos Impertinentes".
A série (que, além da Folha e da PUC-SP, conta agora também com a parceria do Sesc) começa este ano com um diálogo sobre "O Obsceno" entre o rabino Henry Sobel e o escritor João Silvério Trevisan.
Stendhal conta que uma princesa, ao comer voluptuosamente um sorvete numa noite quente, disse: "Que pena não ser pecado!"

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