São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lugares fora do lugar

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

A teoria das idéias fora de lugar, que Roberto Schwarz formalizou, e que Fernando Henrique Cardoso anteviu, é muito engenhosa, mas tem lá seus problemas.
Um deles reside no fato de que, baseada no sistema descrito por Marx, portanto na eleição de certos casos europeus como paradigma, deixa praticamente o resto do mundo -onde não se reproduz a perfeição dos modelos- fora do lugar.
Neste final de século, as bizarrices permanecem ou se agravam -o que leva a suspeitar que o modelo não era tão exemplar assim e que nada realmente está exatamente lugar.
Esses descompassos, que se harmonizam na famosa idéia do desenvolvimento desigual e combinado, têm no mundo de hoje um momento peculiar. A derrocada do socialismo e a generalização do projeto capitalista num sistema internacional, como nunca globalizado, exemplificam de forma espetacular como o mesmo ideário da livre-iniciativa e do mercado pode ser sustentados sob os mais diversos e estranhos sistemas.
Existe, por acaso, algo mais "fora do lugar" do que a China de nossos dias? Um país de cultura secular, governado por um Partido Comunista, que fomenta a economia de mercado, prepara-se para administrar Hongkong e é encarado de leste a oeste como o mais sério candidato a gigante econômico na virada do século? Tudo isso, note-se, num mundo em que o "lugar" -o capitalismo modelar- prevê Estado reduzido, sistema democrático, competitividade empresarial e submissão às leis do mercado.
Se o caso da China é aberrante, os chamados tigres asiáticos igualmente fogem da receita -despontam frequentemente na vanguarda da eficiência capitalista sob regimes despóticos, com forte presença estatal na produção e administração do capital.
Em nossos tristes trópicos, mais do que nunca empenhados em entrar "no lugar" (afinal, todos querem ser "Primeiro Mundo"), os deslocamentos são também flagrantes. Sobre bases econômicas e sociais assimétricas, marcadas por relações de produção arcaicas em convívio com a industrialização selvagem, ergue-se na "superestrutura" a ideologia (de segundo grau?) do liberalismo de última geração.
Estará no lugar? Sim, quando serve para justificar o golpe de Fujimori ou os dispositivos imperiais de Menem.
Não é por acaso que o desejo modernizante no Brasil já manifeste impaciência com os mecanismos democráticos e talvez nutra secretamente o sonho inconfessável de um déspota esclarecido no poder.
Não é por acaso, também, que o discurso de Fernando Henrique tenha causado celeuma, a ponto de o presidente avisar que falou "enquanto sociólogo". Pois como presidente, estaria ainda mais"fora do lugar".

Texto Anterior: Ambulante vai ter dificuldades
Próximo Texto: Justiça gaúcha cria câmara apenas para julgar políticos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.