São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Desestatizar o noticiário

Desestatizar o noticiário
MARCELO LEITE
A expressão "

MARCELO LEITE

A expressão "desestatizar o noticiário" frequenta as reuniões de jornalistas da Folha há anos. Foi originalmente lançada por dois então diretores da Sucursal de Brasília, Gilberto Dimenstein e Josias de Souza, que propunham ao jornal romper com a dependência histórica do material produzido por aquela sucursal para sustentar manchetes. Esta semana, a Folha deu um bom exemplo do que isso pode significar.
Trata-se da manchete (título principal da primeira página) publicada na quinta-feira, "SP tem 219 homicídios no Carnaval".
Naquele dia, "O Estado de S.Paulo" apresentava mais uma de suas costumeiras manchetes econômico-otimistas ("Liquidações de verão aquecem vendas"). Não deixa de ser uma variante do jornalismo "estatizado", que vê o país somente pelo prisma da economia e da política.
"O Globo" e "Jornal do Brasil", no Rio, ainda celebravam o Carnaval e a vitória da Mocidade Independente. O dilúvio pós-Michael Jackson já era água passada.
Vergonha e medo
Foi o leitor da Folha, assim, que teve acesso à notícia mais importante do dia. Ela deu muito mais o que falar -e pensar- do que a vitória da Vai-Vai ou o rebaixamento da Camisa Verde e Branco.
O jornal não deixou de apresentar essas informações na capa, bem no alto. Teve no entanto a sensibilidade de destacar uma notícia trágica, na contramão de todo otimismo monetário que emana de Brasília. Ela deveria encher de vergonha e revolta os paulistas, e não só de medo.
Alguns leitores, e mesmo jornalistas, reclamam que o ombudsman deve também fazer elogios, não só criticar. Ei-lo: a Folha fez a sua parte, pondo a boca no trombone.
Agora é com você, leitor.
Nova Folha
Circula com a edição de hoje um caderno especial apresentando a reforma gráfica que a Folha estréia no próximo domingo. A edição São Paulo do jornal passa a ter cores em 75% de suas páginas, o que só acontecerá em agosto com os jornais que vão para o interior e outros Estados (edição Nacional).
Já defendi o uso da cor nesta coluna, na véspera da inauguração do Centro Tecnológico Gráfico-Folha, alicerce industrial de toda essa transformação. Estou convencido de que o recurso pode incrementar a funcionalidade e o teor de informação do jornal (nas fotos e nos quadros, antes de mais nada), se bem usado. O aperitivo apresentado no caderno "Nova Folha" aponta claramente nessa direção.
O teste do pudim, como se diz, é comê-lo. Aguardo portanto a estréia da roupa nova, antes de qualquer juízo, mesmo porque a reforma implicará múltiplas mudanças no jornal. Seus efeitos sobre os leitores são até certo ponto imprevisíveis.
Peço a todos que leiam a Folha com uma lupa crítica, a partir do dia 3, e manifestem ao ombudsman suas avaliações. Prometo voltar ao assunto na coluna do dia 10. Por enquanto, aproveito para bater numa velha tecla: na base de tudo tem de estar a informação jornalística, aquela que nasce da combinação de reportagem com inteligência.
Ainda o IPC
O já complicado novelo do Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC) enrolou-se mais um tanto anteontem, com a publicação de um artigo do deputado Antonio Kandir (PSDB-SP) na pág. 1-3 da Folha.
O tucano, parceiro de Zélia Cardoso de Mello no confisco da poupança que abriu o governo Collor, apresentou uma justificativa original para o apoio à proposta do colega Nilson Gibson (PSB-PE) sobre o IPC. Para Kandir, a supressão do famigerado artigo 15 do relatório facilitaria a extinção do instituto e suas privilegiadas aposentadorias.
Convincente no domínio abstrato, na arena concreta da política o artigo de Kandir não derrota a suspeita de que foi produzido sob medida. Afinal, a interpretação só veio a público depois da polêmica lista de apoiadores na Folha do último dia 15. Mas a publicação do texto tem o mérito de fazer avançar o debate, como cobrei do jornal na semana passada.
Na pág. 1-2, quase ao lado do artigo tucano, a Folha trazia o editorial "Privilégio e descuido". Leia o terceiro parágrafo do texto de opinião do jornal:
"Eis que agora alguns parlamentares apontam, com argumentação bastante convincente, que é mais fácil extinguir o IPC suprimindo a exigência de discutir o assunto um ano após a reforma da Previdência, ou seja, endossando o destaque de Gibson. Isso evitaria que o IPC ganhasse status constitucional, podendo ser extinto por lei ordinária."
Na mesma página em que saiu o texto de Kandir, o Painel dos Leitores trazia a enésima explicação de deputado arrolado pelo jornal como defensor do IPC. A novidade estava na "Nota da Redação" que vinha sendo apensada às cartas. Foram suprimidas as últimas e mais fortes linhas do texto-padrão (as quais indico entre parênteses):
"A reportagem da Folha considerou como manifestação de apoio ao IPC as assinaturas dos deputados no documento de 'apoiamento ao destaque supressivo do artigo 15 do substitutivo'. Tal artigo determina a discussão de mudanças no sistema de aposentadoria dos parlamentares, no prazo de um ano após a reforma da Previdência. (Ou seja, o pedido do deputado Nilson Gibson, endossado pelos colegas, não era para debater melhor o assunto, mas justamente para evitar a discussão, retirando o artigo do texto da reforma.)"
Benefício da dúvida
Essa combinação de textos nas páginas nobres do jornal -artigo, editorial e Nota da Redação encurtada- pode deixar nos leitores a impressão de que teria ocorrido um recuo, disfarçado, em relação à lista. Para afastar essa suspeita, levei a discussão ao diretor de Redação. Ouvi de Otavio Frias Filho a seguinte explicação:
"A posição do jornal está no editorial de hoje (23/2/96). A alteração da nota se deve a que, diante da argumentação de Kandir, se deve admitir o benefício da dúvida, no terreno das motivações subjetivas."
De fato, é impossível verificar se algum deputado assinou o requerimento com o próprio punho e as motivações de Kandir. Ou, o que parece mais provável, se não foi com segundas intenções (as primeiras de Gibson) -como aliás afirma o editorial "Privilégio e descuido".
Assim como ao diretor de Redação, não me resta dúvida de que, noves fora, foi acertada a publicação da lista. Mas essa convicção merecia defesa mais vibrante e aberta por parte do jornal do que a misteriosa supressão daquelas linhas no Painel do Leitor. Pela simples razão de que esta seção é lida por muito mais gente do que os editoriais.

NA PONTA DA LÍNGUA
A língua portuguesa tem coisas esquisitas, como o uso do verbo "ir" na condição de auxiliar com sentido futuro: "Ele vai aprender, vai corrigir-se". Como os jornalistas são muito mais esquisitos que a linguagem da qual se servem, além de viciados em tendências e antecipações, agora deram para criar o futuro do futuro.
Por alguma razão misteriosa, generaliza-se na imprensa a mudança do tempo do próprio auxiliar: "Ele irá aprender, irá corrigir-se". Não deve estar errado, mas é supérfluo, redundante. Esquisito.
O princípio básico de toda linguagem é a economia: máximo de sentido com o mínimo de sinais. Algo ainda mais válido no jornalismo, sempre às voltas com a falta de espaço. Por ser a redundância inimiga da informação é que se deve escrever "há dois anos" ou "dois anos atrás", nunca "há dois anos atrás". Também é pecado escrever "duas línguas diferentes", pois não sendo diferentes seriam a mesma (perdão pela tautologia).
No caso de "irá aprender", não é espaço que se desperdiça, mas tempo. O verbal, potencializado inutilmente (futuro ao quadrado). E o do leitor, que perde um átimo para desvencilhar-se do ruído crônico. Nestes tempos de impaciência, um átimo pode pôr tudo a perder.

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