São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 1996
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Belga diz que acabou escravidão no futebol

ISABEL PAULO
DO "EXPRESSO", EM BRUXELAS

A teimosia de um obscuro jogador de futebol belga colocou para escanteio a toda-poderosa União Européia de Futebol, a Uefa.
Numa decisão sem precedentes, e que ameaça revolucionar o futebol, a Corte Européia de Justiça declarou ilegais, em 15 de dezembro último, a limitação de europeus nas equipes da União Européia (UE) e as indenizações pedidas pelos clubes pelas transferências de jogadores ao término de seus contratos profissionais.
Essas duas regras violavam a livre circulação de pessoas entre os Estados-membros da UE.
Foi o ponto final no "acordo de cavalheiros" que a Comissão Européia (órgão executivo da UE) mantinha com os dirigentes do futebol, um pacto que permitiu à Uefa viver acima das leis comunitárias durante mais de duas décadas.
O pivô de toda dessa decisão foi Jean-Marc Bosman. Ele nasceu na Bélgica, em 1964, e começou no futebol no Standard de Liège, com o qual assinou o primeiro contrato como profissional.
Em 1988, transferiu-se para o RC Liège, que, dois anos mais tarde, após ter reduzido drasticamente o seu salário, queria impedi-lo de jogar na França.
Foi o início da saga Bosman, uma ameaça que a Uefa tentou erradicar em troca de US$ 1,4 milhão e não conseguiu.
Bosman vive com os pais numa casa modesta, em Liège. Na sala de estar, uma caricatura do jogador com uma dedicatória-trocadilho do sindicato de jogadores dinamarquês: "You're the Boss, man" ("você é o chefe", em inglês).
Atualmente jogando no Visé, um clube da quarta divisão belga, Bosman faz das entrevistas a sua profissão. Só nos últimos três meses, deu perto de cem.
*
Expresso - A decisão da corte surpreendeu-o?
Jean-Marc Bosman - Eu e os meus advogados esperávamos uma decisão bastante severa, especialmente depois que vimos o parecer do advogado-geral.
Mas a sentença da corte foi ainda mais dura do que o parecer deixava antever, ao considerar o sistema de transferências ilegal e ao abolir as cláusulas referentes à nacionalidade de um dia para o outro. Esperava que a corte concedesse um período de adaptação de dois ou três anos.
Mas não, ela foi implacável. E penso que isso aconteceu por a Uefa ter organizado um "lobby" para desestabilizar e influenciar os juízes, o que acabou funcionando ao contrário.
Expresso - Porque razão você decidiu combater judicialmente o RC Liège, a Federação de Futebol Belga e a Uefa?
Bosman - Ao princípio foi para que uma situação de injustiça de índole pessoal fosse reparada. Eu jogava no RC Liège e, ao final do contrato, em 1990, a direção do clube me propôs um salário quatro vezes inferior.
Além disso, o RC Liège tinha comprado o meu passe ao Standard de Liège por uma quantia quatro vezes mais baixa à que o clube pretendia pela minha venda para o exterior.
Ou seja, para jogar no meu clube eu não era muito bom, mas para jogar noutro já era quatro vezes melhor.
Mantive então contato com clubes da segunda divisão francesa e assinei com o Dunquerque por um salário bem mais elevado.
Mas o RC Liège, por razões de garantia bancária, fez a minha transferência ir por água abaixo, obrigando-me a regressar à Bélgica sem poder jogar e sem direito ao seguro-desemprego.
A partir daí, decidi que não discutiria mais com eles, mas só perante um juiz.
Expresso - Você não temeu pela sua carreira?
Bosman - Acima de tudo. No início quis resolver o meu problema com o Liège, mas a Federação Belga colocou-se ao lado do clube e não quis saber das minhas razões.
Então deu-se o princípio da bicicleta: enquanto ganhava, continuava a pedalar, mas, se parasse de pedalar, eu cairia.
A Uefa e a Federação Belga tentaram me quebrar, pensando que, desestabilizado moral e financeiramente, desistiria. Então, movia-me a raiva de não me deixarem jogar e de ver que tentavam boicotar a minha carreira.
Um dia era a raiva, outro a tristeza, depois retomava as forças para lutar contra adversários que me desprezavam. Hoje sinto-me recompensado pela minha carreira perdida.
Expresso - Quem o apoiou nos últimos cinco anos? Quem pagou seus advogados?
Bosman - Foi um combate difícil, porque me deixaram sozinho com meus dois advogados, os senhores Mission e Dupont.
Nesses cinco anos combatemos praticamente sozinhos instituições poderosas, como a Uefa e a Federação Belga. Mas, nos últimos meses, fomos apoiados por alguns sindicatos. Os primeiros foram o português, o francês, o espanhol e o dinamarquês.
O dinamarquês foi o primeiro a dizer que tinha que fazer qualquer coisa e comprometeu-se a ajudar-me financeiramente, dizendo que outros sindicatos se associariam à causa.
Arranjaram dinheiro entre eles e foi graças aos sindicatos mais progressistas que consegui levar o processo até o fim.
Expresso - Houve muitos jogadores do seu lado?
Bosman - Durante os cinco anos que o processo demorou, não tive grande apoio de jogadores. Na Bélgica, a federação dita de tal forma a marcha dos acontecimentos que temiam me apoiar na imprensa ou diante das câmeras, porque sabiam que se arriscavam a multas e a suspensões.
Mas estão agradecidos pelo que fiz em prol da liberdade dos jogadores, e vão organizar, no dia 30 de abril, um jogo beneficente, em Málaga (Espanha), cuja receita reverterá a meu favor.
Muitos querem participar, como Preud'Homme (belga), Cantona (francês), Schmeichel e Laudrup (dinamarqueses).
Expresso - O caso Bosman levou à abolição da escravatura entre os jogadores?
Bosman - Esse é um sentimento generalizado entre os jogadores profissionais. De fato, a partir de agora será muito mais fácil jogar no exterior, por ter sido abolida a cláusula da nacionalidade.
Eles passarão a ganhar melhor, devido ao fim das indenizações pelas transferências. O Milan já foi buscar jogadores ao Ajax com contratos bem mais elevados.
Expresso - Como conheceu os seus advogados?
Bosman - De uma forma muito banal. Foi por meio de um senhor que vive aqui na minha rua e que tem um genro que é advogado, o Jean-Louis Dupont.
Um dia, quando voltei a Dunquerque, o meu vizinho estava sentado na varanda com os meus pais e comentei que estava decidido a contratar um advogado.
Então ele me disse: "O meu genro é especialista em direito europeu. Ele trabalha com o doutor Mission, numa sociedade de advogados que oferece uma relação qualidade/preço muito interessante". Foi muito simples e tive muita sorte.
Expresso - Os tribunais belgas já decidiram os processos que mantinham pendentes?
Bosman - Não. O juiz do Tribunal de Recursos de Liège tomou uma posição preliminar quanto à questão da indenização, tendo enviado um pedido de decisão à Corte Européia de Justiça.
O juiz do Tribunal de Recursos entendeu que eu tinha sido boicotado e que tinha sofrido prejuízos por parte do RC Liège, mas que só decidiria em definitivo depois de uma decisão da corte européia.
Agora que já existe a decisão, tenho de voltar aos tribunais belgas para reclamar a indenização referente aos danos sofridos na minha carreira nestes anos todos. Pedimos cerca de US$ 700 mil.
Expresso - Não é perigoso pensar que já ganhou?
Bosman - O que se passa é que a Uefa e a federação perderam. Para elas, recorrer da decisão não será conveniente.
Será pura perda de tempo e publicidade negativa, porque nada mudará. Por isso, é possível que, nos próximos meses, eu, a Uefa e a federação façamos um acordo quanto aos prejuízos.
Expresso - Já recebeu alguma indenização?
Bosman - Não. Só a ajuda dos sindicatos, que me adiantaram algum dinheiro para pagar alguns honorários aos advogados e viver decentemente.
Expresso - Nesse período, você jogou em outros clubes?
Bosman - Quando me liberaram da transferência fracassada com o Dunquerque, fui jogar no St. Quentin, da segunda divisão francesa. Entre maio de 91 e janeiro de 92, vivi com um seguro-desemprego francês. Depois joguei um período na ilha de Reunião.
Regressei à Bélgica e, de setembro de 92 a maio de 93, estive parado, sem seguro-desemprego, até assinar um contrato com o Charleroi, da terceira divisão.
Por fim, vim para a minha região, e estou jogando no Visé, um pequeno clube da quarta divisão. Jogo lá porque o presidente é meu amigo, quase só por prazer.
Expresso - Como você se sente por ter provocado a maior revolução no futebol europeu?
Bosman - Não creio ter causado uma revolução, mas antes uma evolução. Durante 20 anos, a Uefa e a Comissão Européia nunca discutiram, quiseram deixar tudo como estava e não evoluíram. Podiam ter alterado as coisas lentamente, mas nada fizeram.
Sinto que fiz alguma coisa pelos jogadores profissionais, que serão daqui para a frente muito mais livres. Há sempre alguém que sofre para que se evolua, como no caso dos mineiros aqui de Liège, onde uma centena se sacrificou para que outros tivessem um futuro melhor.
Senti que era essa a minha missão a partir do momento em que vi a minha carreira destruída.
Expresso - O que poderá ganhar o futebol com a decisão?
Bosman - O futebol ganhou porque os clubes não terão que pagar mais pelo passe, não terão de comprar jogadores. Os grandes clubes vão poder enfrentar a Uefa e discutir o que se passa no mundo do futebol. A Uefa deixará de ditar as suas leis e ponto final.
Expresso - Mas a nova ordem não irá favorecer os grandes clubes e prejudicar os pequenos?
Bosman - Em princípio, os grandes clubes irão se beneficiar mais com a decisão. Mas o futebol é, neste momento, um mercado econômico e já são os mais fortes que dominam.
Vivemos num mundo cada vez mais difícil e competitivo, o mundo da rentabilidade.
Por isso, o Milan (Itália) será sempre o Milan, quer existam ou não sistemas de transferências, e o Guimarães (Portugal) será sempre o Guimarães e não poderá crescer muito mais. Julgo que a ordem entre grandes e pequenos se manterá porque eles já criaram a sua própria dimensão.
Expresso - Com a abolição das normas de transferências e a livre circulação de jogadores entre os países da UE, quem cuidará da formação de jogadores?
Bosman - Há dois anos, o Brugges, que é um clube pequeno, vendeu um jogador, o Weber, por muito dinheiro ao Anderlecht.
Podiam aplicar esse dinheiro na formação, em escolas, mas ele só serviu para o enriquecimento pessoal de dois ou três dirigentes.
A partir de agora, os clubes vão ser obrigados a formar jogadores, e formá-los como deve ser. O que ocorria era que essas verbas serviam apenas para amortizar déficits de más gestões, viciadas pela expectativa da venda de jogadores.
Isso acabou e vão ter de lidar com a formação de jogadores com um orçamento bem definido.
Expresso - Mas quem pagará essa formação?
Bosman - Por que não criar um fundo para a formação, financiado pelos clubes grandes e redistribuído para os menores, criando-se uma espécie de caixa comum? Os clubes grandes ficarão naturalmente com os melhores jogadores, por meio de um reembolso lógico dos custos de formação.
O sistema francês soube adaptar-se melhor à realidade do futebol moderno. Um jogador formado pelo Auxerre jogará os quatro primeiros anos como profissional pelo clube, com um contrato bem estabelecido, mas no final deste poderá partir livremente para onde quiser.
A Comissão Européia terá de encontrar idéias para que isso se faça, em conjunto com a Uefa. Para a formação dos jovens mesmo, penso que o custo não vai muito além do pagamento dos equipamentos.
Expresso - Corre o rumor de que a Uefa lhe ofereceu uma soma elevada para você desistir do processo. É verdade?
Bosman - Depois de terem conhecimento das conclusões finais do advogado-geral, em setembro, tentaram calar-me. Durante anos, a Uefa e a Federação belga desprezaram-me.
Nunca abordaram o aspecto humano do caso e, no fim, tentaram pressionar-me financeiramente, pensando que talvez aceitasse. Não sei exatamente quem eram, mas circularam rumores no escritório dos advogados.
Ninguém se expôs diretamente, que a Uefa não é boba. A verdade é que me ofereciam muito dinheiro, cerca de US$ 1,4 milhão.
Recusei porque lutei muito e não ia aceitar dinheiro de quem perdeu tudo nesse processo em nível jurídico.
Se aceitasse, seria como se na final de uma Copa do Mundo estivesse ganhando por 1 a 0 e a três minutos do fim desistisse e fosse com a equipe mais cedo para os vestiários.
Preferi aceitar as ofertas dos sindicatos e os lucros do jogo de beneficência.
Expresso - A Uefa acusa-o de ter persistido em todo este caso apenas por motivações políticas.
Bosman - É absolutamente falso. Este processo foi conduzido por mim e pelos meus advogados, e mais ninguém. É evidente que, a certa altura, precisamos do apoio de parlamentares, o que é normal, porque se tornou um processo muito importante.
A Uefa repetiu essa acusação em diversas ocasiões, mas é falsa. Os meus advogados sempre disseram que a decisão era minha e que, se não conseguisse aguentar a pressão, podia parar de um dia para o outro.
Expresso - Mas, como afirma a Uefa, você levantou a questão da ilegalidade das cláusulas de nacionalidade de uma forma hipotética, já que nunca teve problemas por causa da limitação dos estrangeiros.
Bosman - Claro que tive. Quando joguei no St. Quentin alinhávamos com três estrangeiros, um dos quais era eu.
Quando terminei a época podia ter encontrado trabalho no mercado francês, mas, como era um jogador médio, era considerado o quarto estrangeiro. Ou seja, se não existissem cláusulas de nacionalidade poderia ter sido o quarto ou o quinto jogador estrangeiro, o que me permitiria encontrar emprego na França.
Expresso - Por que razão a Comissão Européia modificou a sua posição quanto ao limite de estrangeiros na fase final do processo Bosman?
Bosman - Durante anos, a Comissão nunca mexeu nesse dossiê, e nunca tentou alterar nada por razões políticas. No último momento, quando perceberam que o vento mudava de direção, colocaram-se na posição certa.
Na reunião com a Uefa, a Comissão disse que discutiria o caso Bosman, mas que negociar estava fora de questão. A decisão foi de tal maneira bem feita que a comissão nada pôde fazer.
Expresso - Por que só a Liga inglesa está cumprindo a nova decisão?
Bosman - Os ingleses são muito astutos, e creio que a federação passou a apoiar a decisão devido a pressões de dirigentes de grandes clubes. Dois ou três presidentes de clubes importantes, como o Manchester e o Newcastle, notificaram a federação de que iriam deixar de aplicar imediatamente as regras da Uefa. Disseram: "Se quiserem nos multar, vamos recorrer ao juiz do caso Bosman e vocês perdem".
Expresso - O que vai fazer quando abandonar o futebol?
Bosman - Ainda não sei. Há coisas a fazer no sindicalismo aqui na Bélgica. Já dei muito à classe e penso que há outros jogadores que devem atuar mais.
Pretendo ter uma tarefa mais simbólica, dando a minha contribuição em certos momentos. Ou, talvez, tentar algo interessante no setor privado. Não sei bem.
Expresso - Os governos italiano e francês pretendem alterar o Tratado de Maastricht de forma a consagrar medidas de exceção para o esporte. Não sente que poderá ter lutado em vão?
Bosman - Para a revisão do tratado, é preciso que todos os Estados-membros estejam de acordo. O problema é que o governo dinamarquês é a favor do caso Bosman e contra essa exceção, o que inviabiliza qualquer alteração.

Entrevista publicada originalmente pelo jornal semanal português "Expresso" em 17 de fevereiro

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